Severino Francisco
Soterrado pela avalanche do Oscar e pelo carnaval, um pequeno acontecimento quase desaconteceu no mar de notícias: o desativamento do parque infantil da 105 Norte. Em assembleia de 26 de fevereiro, a maioria dos moradores votou pela desinstalação do parque. No entanto, a votação foi apertada e os moradores insatisfeitos com a decisão se mobilizaram e apresentaram uma denúncia ao Ministério Público pela manutenção do equipamento de lazer.
Em meio à pendenga, o parquinho foi desmontado e desativado 48 horas depois da assembleia. Eu considero compreensível, em certa medida, que as pessoas queiram sossego nas horas de lazer. No entanto, em Brasília, esse desejo legítimo chega às raias da insensatez.
O chão livre dos pilotis é o quintal coletivo das crianças brasilienses. A arquiteta Elisa Costa, filha do urbanista de Brasília Lucio Costa, observa que Brasília forjou uma expressão típica, que não existe em nenhuma outra cidade: “Vamos brincar embaixo do bloco”. O pilotis é um dos elementos mais importantes do projeto de Superquadras concebido por Lucio Costa. É um pequeno aspecto que assegura qualidade de vida na cidade.
A rigor, o pilotis é uma pilastra de sustentação dos prédios que libera a área térrea para circulação, a convivência e a fruição coletivas. Estabelece a primazia do público sobre o privado. Quem criou o conceito foi Le Corbusier. Os arquitetos modernos utilizaram largamente esse recurso para permitir a circulação, a convivência e a fruição coletiva da área térrea dos blocos.
Mas, no caso específico de Brasília, a aplicação da técnica alcançou uma dimensão que não existe em nenhum lugar do mundo. Está em quase toda a área residencial. Lucio Costa usou como referência o projeto que ele mesmo havia realizado para a construção do Parque Guinle, em 1940, no Rio de Janeiro, com edifícios limitados a seis andares, chão livre e áreas verdes generosas.
Só que, em Brasília, o Parque Guinle se multiplica e se espraia por toda a cidade, transformada em cidade-parque: “Creio que houve sabedoria nessa concepção: todos os prédios soltos do chão sobre pilotis, no gabarito médio das cidades europeias tradicionais – antes do elevador, harmoniosas, humanas, tudo relacionado com a vida cotidiana: as crianças brincando à vontade ao alcance do chamado das mães”, escreveu Lucio Costa.
Na curta história de seis décadas da cidade, várias gerações de brasilienses cresceram embaixo dos blocos, brincaram, correram, namoraram, conversaram, tocaram violão, compuseram canções e entabularam conversas intermináveis.
Ora, os parquinhos e os pilotis foram concebidos por Lucio Costa precisamente para as crianças brincarem, conviverem e serem felizes. Parecem que chamam de bagunça o que é um som de vida pulsando. O condomínio não pode tomar uma decisão de maneira unilateral, mesmo porque o equipamento está instalado em um espaço público. Com isso, desfiguram uma das singularidades da cidade-parque.
Se o nível de intolerância crescer neste ritmo, daqui a pouco os condomínios de bloco decidirão cortar as árvores porque elas atraem os pássaros e as aves perturbam o silêncio com o seu canto. Talvez o Ministério Público devesse promover uma ação educativa no sentido de conciliar os interesses dos moradores sem ferir os direitos e as peculiaridades do espaço público de Brasília.
PS: Os moradores da 105 estão fazendo uma vaquinha para reconstruir o parquinho. O endereço para quem quiser colaborar é: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/vamos-reconstruir-o-parquinho-das-crianças-da-105-norte