Severino Francisco
Na virada da década de 1970, um rapaz magricela apareceu no programa Fantástico, da Rede Globo, cantando versos estranhos: “Hoje está passando um filme de terror/Na sessão das 10 um filme de terror/Dura um ano inteiro o filme de terror”. A repórter perguntou ao cantor por quê tanto horror e ele respondeu: “É uma questão de alimentação. A-li-men-ta-ção”. Estávamos no ápice do regime de exceção.
O cantor capixaba Sérgio Sampaio nasceu na mesma Cachoeiro do Itapemirim, de Roberto Carlos. Os dois primeiros discos de Sampaio são primorosos. Em Brasília ele tinha – e tem – muitos admiradores apaixonados por sua música.
E, da minha parte, tive a chance de contribuir para ampliar a conexão de Sampaio com Brasília. Eu participava do conselho consultivo da Funarte e sugeri que ele fosse convidado a fazer um show no auditório da instituição, próximo à Torre de TV.
Sérgio apresentou performance memorável, acompanhado apenas do violão. Ele era uma espécie de anti-Roberto Carlos, não sabia conviver com o sucesso. No entanto, era fã do conterrâneo, sempre quis que alguma composição sua fosse cantada por Roberto, mas foi inútil. Sampaio vingou-se com uma linda e pungente canção, Meu pobre blues: “Eu não preciso de sucesso/Só quero ouvi-lo cantar meu pobre blues/E nada mais”.
Um outro grande momento do show foi a canção Ninguém vive por mim, em que Sérgio toca na sina de marginalizado pela indústria cultural. Ele resistiu de maneira heroica: “Fui tratado como um louco/Enganado feito um bobo/Devorado pelos lobos/Derrotado, sim/Escapei desta quadrilha/E hoje estou aqui/O pior dos temporais/aduba o jardim.”
Pois bem, depois desse show, Sérgio voltou várias vezes a Brasília, fez amigos e namorou mulheres brasilienses. E, o mais importante, compôs uma linda canção para Brasília, com toda franqueza, contundência e afeto.
Ela não se perdeu graças ao empenho de Zeca Baleiro, que a recolheu e registrou no disco póstumo Cruel. Da mesma maneira que tantos outros forasteiros, Sampaio chega a Brasília atulhado de preconceitos, ideias fechadas e frases feitas.
Mas, ao abrir-se para a convivência com os brasilienses e com o cotidiano, ele começa a perceber as singularidades da cidade: “Quase me sinto em casa em meio a suas asas/E dablius e eixos e ilhas/Brasília cidade que um dia eu falei que era fria/Sem alma, nem era Brasil/Que não se tomava café numa esquina/Num papo com quem nunca viu”.
E acho que todos nós que não nascemos na cidade fazemos esse percurso, com menor ou maior variação. Primeiro, o estranhamento e a recusa; em seguida, a interação com as circunstâncias novas; e, por fim, o reconhecimento de Brasília.
E não foi diferente com Sérgio Sampaio. Mas o que me parece interessante é a franqueza com que ele expressa as dificuldades, os trâmites e os limites do embate com a cidade. Não esconde os desencontros, os desafios e a indiferença inicial. Não concebe o diálogo fácil e demagógico, como fazem, por exemplo, os cantores sertanejos.
Em vez disso, afirma que “quase” se sente em casa em Brasília e admite que precisaria de mais tempo para captar a cidade no desenho, nos lugares e no espírito. Reconhece, humildemente, que é preciso conhecer primeiro, antes de lançar vereditos sumários, com ares de juízo final: “Sei que preciso aprender/quero viver pra saber/e conhecer Brasília/Ver o que há no Paranoá/lago de sol, noite, lua”.
Os forasteiros que aterrissam em Brasília, carregados de verdades prontas e de armadilhas, deveriam ouvir essa canção de um estrangeiro que abriu os radares para interagir com a cidade e se enamorou por ela. A canção de Sampaio mostra que o amor é uma forma de conhecimento sobre a cidade: “O olho do amor/desconhece armadilha/assim vim ver Brasília”.
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