Severino Francisco
Confesso que estou com saudades do Brasil. Nos perdemos tanto que precisaremos algum esforço para reencontrarmos a nossa identidade de brasileiros como nação. Mas, apesar de parecer, talvez, anacrônico, eu ainda gosto de ser brasileiro. Em outros momentos, era bem mais fácil delinear essa identidade. No entanto, a brasilidade sempre foi um tema controvertido.
Estava folheando uma famosa entrevista de Guimarães Rosa, concedida ao arguto e incisivo crítico alemão, Gunther Lorenz, quando me deparei precisamente com o claro enigma da brasilidade. Lorenz comenta que é um tema que perpassa toda a literatura brasileira, mas nunca encontrou uma definição satisfatória.
Acrescenta que muita gente séria já lhe disse que essa brasilidade não passava de baboseira. No entanto, Guimarães Rosa discorda inteiramente: “Sim, veja, Lorenz, quem quer que lhe tenha dito que a ‘brasilidade’ é apenas uma baboseira deve ser um professor, um desses ‘lógicos’ que não compreendem nada, que só compreendem com o cérebro; e, como se sabe, o cérebro humano é uma organização muito defeituosa e debilitada. Por isso, o homem possui, além do cérebro, o sentimento, o coração, como queira.”
Rosa reconhece que não poderá dar uma definição para algo incompreensível, mas pode tentar uma interpretação. É lógico que existe uma brasilidade, afirma o autor de Grande Sertão: Veredas: “Existe como a pedra básica de nossas almas, de nossos pensamentos, de nossa dignidade, de nossos livros e de toda nossa forma de viver.”
Mas o que seria a brasilidade? Para responder à intrigante pergunta, Rosa recorre a Goethe, que definiu a poesia como “a língua do indizível”. E traça um paralelo entre a brasilidade e a palavra “saudade” para os lusitanos: “Um português não precisa explicá-la; já nasce com ela, leva-a dentro de si. Conhece-a com o coração, não com a cabeça. Assim acontece com a ‘brasilidade’; nós dois sabemos a importância que tem e o que quer dizer; e também só o sabemos com o coração.”
Rosa avança e argumenta que não podemos explicar a brasilidade fora da área linguística e sentimental: “Existem elementos da língua que não podem ser captados pela razão; para eles são necessárias outras antenas. Mas, apesar de tudo, digamos também que a ‘brasilidade’ é a língua do indizível.”
Para mim, essa língua do indizível se manifesta, principalmente, na arte. Eu a reconheço em Grande Sertão: Veredas, quando o jagunço Riobaldo Tatarana filosofa: “Eu, você, todos nós, nascemos doidos. E precisamos rezar muito para desdoidar. Reza é que sara loucura”. Eu a reconheci nos dribles de Garrincha ou nas fintas desconcertantes ao senso comum, aplicadas por Manoel de Barros, que era uma espécie de Garrincha da poesia: “Não era o normal o que havia de lagartixas/na palavra parede”.
Enrolar-se em uma bandeira não aplaca a minha fome de Brasil. Eu acho que, depois de sairmos do pesadelo da pandemia e do descaminho político, nós precisaremos de uma nova Tropicália, um novo Cinema Novo, uma nova Bossa Nova, um novo Mangue Beat, um novo Grande Sertão: Veredas, um novo Garrincha ou uma nova marcha das mulheres indígenas em Brasília para retomarmos a conexão espiritual com a brasilidade.