O falseamento das palavras

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Severino Francisco

O cineasta Glauber Rocha e o jornalista Paulo Francis se conheceram por meio de um duelo. Francis era crítico de teatro na Última Hora, no Rio, e escreveu um texto desancando o trabalho desenvolvido pelo diretor Martim Gonçalves em Salvador, a quem acusava de provincianismo.

Glauber tinha pouco mais de 20 anos, era ilustre desconhecido fora de Salvador, mas tomou as dores de Martim, publicou o artigo Tope a parada, mister Francis, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, editado por Reynaldo Jardim. E provocou Francis a conhecer o trabalho de Martim em Salvador: “Por sermos baianos não somos cretinos como você pensa. A fonte da juventude não está nos bares e muito menos nesta angústia diária de ler jornais estrangeiros e aspirar Nova York ou Paris e se frustrar novamente em sua profissão de crítico, que seria digna caso fosse honesta e interessada no seu país. Como pode, então, uma pessoa acusar outra de diletante e alienada, se ela mesma acha que o centro do mundo é o Rio ou São Paulo”.

Francis considerou o artigo tão bem escrito que não respondeu e ficou amigo de Glauber até o fim da vida. Imagine nos dias de hoje alguém que se torne amigo de outro por causa de uma divergência cultural ou política. É algo completamente improvável. Lembrei do embate por causa das falsas polêmicas que nos assolam. No caso de Glauber e Paulo Francis estava em jogo o debate ainda atual sobre a dominação dos grandes centros urbanos sobre os centros regionais.

Nós temos uma tradição de grandes polemistas: Oswald de Andrade, Gilberto Freyre, Nelson Rodrigues, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, José Guilherme Merquior. A campanha de Nabuco pela abolição é memorável.

E, no campo da música popular, o duelo de Wilson Batista e Noel Rosa girou em torno do tema da malandragem: “Malandro é palavra derrotista/que só serve pra tirar todo valor do sambista/proponho ao povo civilizado/não chamar de malandro/e sim de rapaz folgado”.

E, para puxar para o presente, é possível serem chamadas de polêmicas as batalhas poéticas dos rappers nas praças. Elas compõem um balé de inteligência, improviso e verve. Mas não é possível dizer o mesmo sobre as falsas pendengas atuais. A imprensa tem feito um trabalho muito importante durante a pandemia. Se não fosse ela, aliada à ciência, a situação seria ainda mais grave.

No entanto, parece-me que alguns colegas se equivocam em qualificar de polêmicas atitudes e manifestações que são expressões apenas de ignorância, falta de educação, tolice, insciência, estupidez ou asnice. Com isso, papalvos de carteirinha são alçados à condição de grandes polemistas. Ganham o status de grandes intelectuais.

Eu pergunto: o que há de polêmico em praticar racismo, desmontar estruturas de fiscalização do meio ambiente, atacar as mulheres covardemente, negar a singularidade dos povos indígenas, fazer manifestações contra a democracia ou recusar-se a usar a máscara em uma pandemia? O que tem de polêmica a campanha negacionista contra as vacinas? Nada. É, simplesmente, uma mentira perigosa.

Precisamos reabilitar a dignidade das palavras. Contendas que não tenham nenhuma ideia em jogo não podem ser nomeadas de polêmicas. O primeiro passo é chamar os fatos pelo seu nome verdadeiro. Como diria o polemista Rui Barbosa: “Em vez de evoluir, retrogadamos”.

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