O êxtase do Vampiro

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Entrar em contato com Dalton Trevisan, que nos deixou, recentemente, não era difícil; era impossível. Mas por um desses lances do acaso jogado pelos deuses da literatura se tornou possível para o brasiliense José Salles Neto, presidente da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Salles é, a um só tempo, o presidente, o editor, o secretário, o distribuidor, o assessor de imprensa e o office boy da entidade.

Bate o escanteio e vai na área para cabecear. Ele é uma espécie de José Mindlin candango, com a desvantagem de não dispor do dinheiro das indústrias do bibliófilo paulista (que já nos deixou ) para bancar os sonhos de livros.

Salles é brasiliense de Araxá, Minas, começou colecionando gibis e hoje acumula um acervo de 15 mil títulos, sendo 3 mil, de arte. O sobrado onde mora, no Lago Norte, com área de mais de 400 metros, é uma biblioteca de babel com livros desmoronando por todos os lados. Nunca entrou em uma livraria e saiu sem comprar ao menos um volume.

Criou em Brasília a Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Só com a cara e a coragem, ele conseguiu a façanha de envolver, na condição de colaboradores e cúmplices, uma constelação de nomes de primeira linha, incluindo alguns dos seres mais inacessíveis e intratáveis do planeta de extraterráqueos da literatura e das artes gráficas: Dalton Trevisan, Millôr Fernandes, Ferreira Gullar, Rubem Fonseca, Luis Fernando Verissimo, Rubens Gerschman, Antonio Candido, Marcelo Grassmann, Renina Katz, Poty (o ilustrador de Guimarães Rosa), entre outros.

Certo dia, Salles deu na veneta a ideia de publicar um livro do irascível curitibano Dalton Trevisan. Como todo mundo sabe, Trevisan não concedia entrevistas e só conversava com amigos: “Escritor não tem de falar; escritor tem de escrever; além disso, sou tímido, um pouco menos com as loiras oxigenadas”, escreveu, se defendendo.

A única tênue ponte era Eleutério, dono de uma pequena livraria de rua de Curitiba, frequentada por Dalton Trevisan, que levava livrinhos de seus contos em edição artesanal para que fossem distribuídos a leitores realmente amantes da ficção do Vampiro de Curitiba. Salles sondou o terreno, mas Eleutério não foi nada otimista: “A resposta de Dalton será um terrível palavrão ”, vaticinou.

Contudo, para a surpresa de todos, o Vampiro de Curitiba aceitou, impondo uma condição: teria de ser a novela A polaquinha, de um erotismo cabeludo, com trechos picantes no limiar da pornografia mais grossa. Salles ficou nervoso, com receio de perder muitos sócios mais conservadores da Confraria.

Mas topou e convidou o artista gráfico Darel Valença Lins, que ilustrava as crônicas de Nelson Rodrigues na Última Hora. Foi o livro mais bonito publicado na Confraria, pesa uns quatro quilos. Atualmente, a edição está esgotada e custa de R$ 4 mil a R$ 6 mil nos sebos.

Apenas uma confreira de 82 anos se desligou do clube do livro. E, em carta, derramou-se em desculpas: a exigência partiu do marido de 87 anos, escandalizado com a publicação. As imagens ficaram primorosas e o Vampiro de Curitiba entrou em estado de êxtase celestial: mandou um dos seus livros para Salles com uma dedicatória que se estendeu por três páginas, nas quais arrematou: “Essa foi a maior homenagem que eu recebi em vida”.

PS: Fique ligado, pois o MAB está promovendo uma mostra retrospectiva de desenhos e ilustrações de Dariel Valença Lins

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