Severino Francisco
Na 57a edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com certeza, a ausência mais sentida será a de Vladimir Carvalho. Com ou sem a exibição de filme de sua lavra, ele era uma das atrações do foyer do Cine Brasília. Sempre atilado, afetuoso, atento, generoso e simpático. Vladimir era de uma solidariedade pungente, comovente e franciscana.
Contava que, certo dia, do final da década de 1970, Glauber Rocha apareceu em seu apartamento e fez uma pergunta intrigante: “Vladimir, vim aqui para você me arrumar um baseado”. Os que conheciam Vladimir sabiam que ele era um careta convicto, a ponto de ganhar o apelido de boêmio Águas de Lindóia, pois ia com alguns amigos aos bares, mas não tocava em bebida alcoólica. Só tomava suco ou água mineral.
E não precisava de nenhum aditivo químico mesmo, pois na condição de aquariano, era pilhado pela própria natureza. Falo de cátedra porque sou do mesmo signo. Pois bem, ante ao pedido de Glauber, Vladimir passou a telefonar para conhecidos. Ninguém entendia nada. Era só pela amizade e solidariedade a Glauber.
Quando não são reconhecidas as pessoas que têm talento ficam muito ressentidas. O próprio Glauber morreu incompreendido e amargurado. Felizmente, Vladimir foi brindado com muito reconhecimento formal e informal. Nós o reverenciamos como ele merecia. Com certeza, Vladimir ficaria satisfeito de ter seu nome dado à sala de cinema do Cine Brasília, pois era, para ele, uma segunda casa. Nada mais justo e que merece o nosso aplauso.
Mas havia algo que o inquietava e foi a grande preocupação e o grande desejo dele na reta final da vida: o destino do Cinememória, a fundação que ele criou com dinheiro do próprio bolso para abrigar o acervo sobre cinema reunido durante toda uma vida dedicada à arte cinematográfica.
Graças a ação das moças do coletivo Maria Cobogó e do Iphan, esse acervo foi catalogado e se abriram perspectivas de que lhe fosse dado um destino. Segundo amigos próximos de Vladimir, a notícia provocou uma alegria tão intensa que levou a um infarto, que causou a sua morte. Vladimir pensava longe: ele tinha em mira que o acervo do Cinememória seria o ponto de partida para a criação da Cinemateca de Brasília.
No livro Uma situação colonial (Cia das Letras), temos um precioso depoimento de Paulo Emílio Sales Gomes sobre o tema, nos tempos em que ele era professor da Universidade de Brasília.
Sigamos o relato de Paulo Emílio depois de promover uma mostra sobre o cineasta francês René Clair: “Torna-se evidente que as tarefas de difusão de uma cinemateca poderão adquirir na nova capital um cunho, uma amplidão e um significado em profundidade, ainda inéditos no panorama brasileiro.”
Se os serviços que a Cinemateca poderá prestar a setores adultos da população de Brasília já se anunciam tão ponderáveis, tornam-se irrisórios perto do que poderá ser feito junto às crianças, argumenta Paulo Emílio. “O esquema educacional previsto para Brasília tornará possível, finalmente, a única ação realmente decisiva com a qual sonham os responsáveis pelas cinematecas: vencer o analfabetismo cinematográfico no mesmo terreno, a escola, em que o outro está sendo vencido.”
Muitas coisas mudaram de lá para cá, no entanto, a ideia de uma cinemateca permanece plenamente viva e pertinente a Brasília na condição de capital. O GDF destinou cinco lotes no Eixo Monumental Oeste para abrigar instituições com equipamentos culturais e de lazer. Reivindico que um desses terrenos seja destinado a construção da Cinemateca de Brasília.
Seria uma forma de, efetivamente, honrar os nomes de Vladimir Carvalho e Paulo Emílio Sales Neto. Uma capital não pode ser mero cenário para um faroeste caboclo, ela precisa irradiar inteligência própria, sob pena de correr sérios riscos.