Severino Francisco
Uma das surpresas mais alentadoras de Brasília nas últimas décadas foi o surgimento dos bloquinhos de carnaval nas superquadras, com uma extraordinária riqueza de propostas e matizes. Tem samba, banda de pífanos, frevo, funk, maracatu, reggaeton, coco. No entanto, parece que o direito ao silêncio se metamorfoseou em paranoia e ameaça às manifestações culturais. Nós assistimos os efeitos desse excesso de suscetibilidade, recentemente, na investida contra o Eixão do Lazer, um dos espaços mais democráticos e comunitários da cidade.
Morei na 406 Norte na década de 1980. Algumas vezes, o som de rock pesado subia e reverberava pelas cercanias. Havia moradores que se incomodavam, mas eu suportava bem os decibéis que vibravam das caixas de som. Pois bem, tempos depois, soube que o som pesado era da banda punk Aborto Elétrico, comandada por Renato Russo, base para o rock Brasília da era de ouro na década de 1980.
É compreensível, em certa medida, que as pessoas queiram sossego nas horas de lazer. No entanto, em Brasília, esse desejo legítimo chega às raias da insensatez. Na 105 Norte, alguns moradores organizaram um movimento para acabar com um parquinho de crianças. Estão incomodados porque elas fazem muito barulho. Não sei de som mais agradável do que o das crianças brincando na escola ou no parquinho.
Os que fazem campanha contra o parquinho alegam que o equipamento provoca muita bagunça e circulação pelos pilotis. Ora, os pilotis foram concebidos por Lucio Costa precisamente para as crianças brincarem, conviverem e serem felizes. Chamam de bagunça o que é um som de vida pulsando. O condomínio não pode tomar uma decisão de maneira unilateral, mesmo porque o equipamento está instalado em um espaço público. Com isso, desfiguram uma das singularidades da cidade-parque.
Os novos alvos são os bloquinhos de carnaval das superquadras. O governo concentrou todos no Eixo Íbero-Americano, na Esplanada e Setor Comercial Sul. Tudo bem se isso ocorrer com as escolas de samba ou com os grandes blocos. Mas obrigar os bloquinhos a desfilar somente na região central do Plano Piloto não é razoável. Alegam a necessidade de garantir segurança aos brincantes. Claro que esse aspecto é importante.
Todavia, em vez de alterar o desenho espontâneo do carnaval de rua, os administradores deveriam garantir a segurança nos lugares em que a folia acontece. Essas manifestações espontâneas constroem a alma de uma cidade. O exemplo clássico é o Pacotão que desfilou na contramão do trânsito e virou uma tradição brasiliense.
Vocês imaginaram se no Rio de Janeiro, no Recife, em Salvador ou em Belo Horizonte, as prefeituras decidissem que não haveria mais carnaval de bairro e todos os bloquinhos teriam de desfilar no Sambódromo ou no Centro Histórico? Seria a morte do carnaval de rua nas grandes cidades. Não advogo a bagunça, as atividades precisam ter regras, mas essa paranoia do silêncio não existe em nenhuma outra cidade brasileira. Ela cerceia a cultura.
Cássia Eller, Legião Urbana, Rosa Passos, Hamilton de Holanda se forjaram nos barzinhos das superquadras e tocaram nos palcos mais importantes do Brasil. Não quero ditar regras, mas, sim, apenas manifestar o meu espanto. Eu acho que, se houver bom ânimo de todas as partes, é possível chegar a um acordo para que o silêncio possa conviver com a cultura.

