Severino Francisco
Já imaginou participar de um programa cultural chamado O Quintal do Bandeira? No caso, é o poeta pernambucano Manuel Bandeira. Há duas semanas, o poeta e ensaísta brasiliense Francisco K tomou um avião até o Recife, onde nasceu em 1961, para lançar e debater o seu livro Mangue mundo (Sigla Viva), que estabelece conexões inusitadas entre Chico Science, Josué de Castro e João Cabral de Melo Neto. O que liga os três pernambucanos ilustres é a poética do mangue.
Além de Francisco K, a conexão Brasília-Recife no Quintal do Bandeira reuniu DB Mabuse, designer e um dos pensadores do Mangue Beat; Roberto Azoubel, coordenador de Literatura da Secretaria de Cultura de Pernambuco; e Marília Mendes, coordenadora do projeto Pasárgada. Não poderia haver recepção mais afetuosa, atenciosa, sensível e inteligente para quem escreve um livro sobre o manguebeat do que ser acolhido por mangue-girls e mangue-boys. As chuvas que se abateram sobre o Recife prejudicaram o lançamento do livro, mas, em compensação, a live foi excelente.
Ver Chico Science e a Nação Zumbi, pela primeira vez, numa noite da década de 1990, na Esplanada dos Ministérios, foi um dos acontecimentos mais memoráveis de minha vida. De repente, todas as luzes se apagaram e a banda tomou de assalto a cena da cidade espacial como se fosse um ataque avassalador de cangaceiros.
Só que em vez de fuzis, eles empunhavam guitarras, baixos, tambores e violência poética. A sensação era a de estar envolvido por um maracatu atômico, que atropelava tudo que encontrasse pela frente.
Era uma nova tropicália, uma tropicália pernambucana, mais dramática, mais frontal e mais contundente. Em uma das canções, Chico canta: “Me desculpe, senhor, me desculpe, mas essa aqui é a minha nação”. Pensei: “Sim, eu pertenço a essa nação zumbi, a essa nação de ancestralidades e de futurismos, a essa nação que recria, resiste e se insurge.” Mas vamos à live.
Antes do início da live, fomos brindados com um magnífico clipe em que Francisco K recita trechos do poema O cão sem plumas, de João Cabral, remixados com imagens do Recife e ao som da composição instrumental Salustiano song, de Chico Science e Nação Zumbi. Josué de Castro alerta, com palavras que ecoam no Brasil atual, em que o presidente se jacta de o Brasil produzir alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas no mundo, enquanto cerca de 30 milhões de brasileiros padecem de fome no nosso quintal: “Todo extraordinário progresso do mundo está comprometido por causa do problema da fome.”
A leitura de Francisco K acompanha a música de Chico & Nação Zumbi e acelera o ritmo das palavras, quase como se fosse uma embolada, transformando o poema de João Cabral em uma letra de uma canção do manguebeat: “Aquele rio está vivo na memória/como um cão vivo dentro de uma sala/debaixo dos lençóis, da camisa, da pele/o que vive é agudo/o que é vivo fere”.
Com instinto e intuição velozes de artista, Chico captou no ar, em contato rápido, o pensamento de Josué de Castro e a poesia de João Cabral. Mas Chico imprime um outro sentido aos homens-caranguejos de Josué de Castro e aos homens-lama de João Cabral. Eles passam por uma metamorfose e se transformam em mangue-boys e mangue-girls, que se descolam da opressão e expandem a consciência rumo ao ciberespaço ou ao cosmos, antenando boas vibrações.
Na passagem dos 100 anos da Semana de Arte Moderna e dos 30 anos do manguebeat, foi um candango-pernambucano que emprestou novos olhos para celebrar o último ciclo do modernismo no Brasil, que mexeu com as camadas tectônicas da música, do comportamento, do cinema, do design, da política e da moda.
Chico Science reescreveu a história da música regional e a história das músicas das periferias do mundo com o corpo, inventando um modernismo a partir do quintal pernambucano, lembrou Roberto Azoubel. Para Mabuse, Chico era um grande cronista da cidade: “Com Pernambuco debaixo dos pés/E a mente na imensidão”, cantaria Chico Science.
PS: Para quem se interessar, a live está disponível na internet, basta clicar: Antenas do mangue do meu quintal: Chico, Josué e Cabral.
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