Severino Francisco
Não sou brincante de carnaval, mas acompanhei de perto as articulações para a criação do bloco Pacotão nas redações dos jornais, com Fernando Lemos, Claudio Lysias, Carlão, David Renault, Racsow, Lobão, Samuca e Moacyr de Oliveira, o Moa. Embora não participasse diretamente, sempre fui simpático ao bloco e talvez tenha dado uma pequena contribuição para que ele tenha se tornado um fenômeno candango com o meu inestimável apoio moral.
Tudo começou como uma brincadeira despretensiosa de jornalistas politizados, boêmios, festivos, críticos e bem-humorados, numa reação ao conjunto de medidas lançado pelo governo do presidente Ernesto Geisel, em abril de 1977, na derradeira tentativa desesperada de manter o controle político que começava a escapar no Congresso Nacional.
O chamado Pacote de Abril apresentava a proposta indecente de atropelar as regras eleitorais, criar senadores biônicos, instituir eleições indiretas para senadores e promover reformas na estrutura do Judiciário.
Mas, àquela altura dos acontecimentos, o desejo de retomar a democracia já estava solto nas ruas e a proposta virou piada nas mesas dos bares. Um dos bares era o do Clube da Imprensa, onde, em meio a rodadas infindáveis de cervejas, o grupo de jornalistas resolveu fundar um bloco de carnaval: a Sociedade Armorial Pafafísica Rusticana Pacotão. Sociedade Armorial era uma referência à Sociedade Siri na Lata, criada um ano antes em Recife.
A patafísica, ciência das relações imaginárias, remetia ao espírito anárquico do escritor francês Alfred Jarry, autor de Ubu Rei. Rusticana brindava a cavalaria, arma do general-presidente Ernesto Geisel. O símbolo do bloco, desenhado pelo artista gráfico Lobão, era uma tartaruga, em sintonia com o ritmo da redemocratização pregada por Geisel: lenta, gradual e segura.
As críticas do Pacotão incomodavam aos poderosos. Todos os anos, a marchinha vencedora era aguardada com ansiedade em todo o país. Ao longo do tempo, com a saída dos fundadores, em certo momento, eu acho que o bloco se desvirtuou da crítica inteligente e bem-humorada. E tem outro aspecto: se alguém me dissesse que os jornalistas se tornaram muito chapas-branca, eu teria dificuldades em contestar. Quando o ex-presidente vociferava barbaridades, as âncoras e os âncoras dos telejornais comentavam: “subiu o tom”.
Todavia, a marchinha escolhida em 21 de janeiro para embalar o desfile do Pacotão deste ano honra o melhor espírito de crítica inteligente e irreverente do bloco. O título da canção é ET Ladrão de joias, de autoria de José Edmar Gomes. A marchinha evoca a tentativa de golpe do fatídico 8 de janeiro e outros eventos de delinquência oficial: “Brasília virou um formigueiro/No dia 8 de janeiro/Todos os ratos, carrapatos e viúvas/Saíram dos porões da ditadura/ A Esplanada ficou um pandemônio/E o demo estava solto no terreiro”.
Na sequência, a letra estabelece uma conexão entre os acontecimentos, aparentemente, desligados. Brasília precisa manifestar esse espírito crítico, senão o restante do Brasil acha que o brasiliense é um alienado que aceita, passivamente, qualquer insanidade. Nada melhor para desmistificar a arrogância, a ignorância e a mentira do que o humor:“Quebraram palácios/Roubaram as joias do poder/Alienados por um certo ET/Deu tudo errado/O gado foi encurralado/E o ET teve que as joias devolver! iê, iê, iê, iê…”
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