Na terra do Braga

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Sempre tive a curiosidade de saber porque Cachoeiro do Itapemirim, uma cidadezinha do interior do Espírito Santo, perdida entre serras, com ar bucólico, pôde produzir tantas eminências no campo da cultura: o ilustre colega Rubem Braga, o cantor Roberto Carlos, o maestro Raul Sampaio, o compositor Sérgio Sampaio, a cantora Nara Leão, a poetisa Marly Oliveira, o crítico de arte Paulo Herkenhoff e a atriz Darlene Glória. Pois bem, o jornalista Sérgio Garschagen escreveu o livro Parece que foi ontem precisamente para tentar responder a esse claro enigma.

É importante registrar que o humor e a ironia são dois dos esportes mais praticados pelos cachoeirenses. Rubem Braga imaginou desta maneira a sua chegada ao céu: “Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe disser em voz baixa: ‘Eu sou lá de Cachoeiro…”

Antes de ler o livro de Garschagen, eu imaginava que esse tipo de humor era subproduto de Minas Gerais. Mas, agora, comecei a compreender que ele é uma legítima expressão de certo nível de ilustração dos cachoeirenses. Nada a ver com a esculhambação cearense, o escracho carioca, a contundência pernambucana, o deboche baiano ou o ceticismo mineiro.

É um humor de quem está de bem com a vida. Reparem que, para Carlos Drummond de Andrade, Itabira era um retrato na parede. E como doía. Enquanto isso, Rubem Braga tratava a sua Cachoeiro do Itapemiriam como se fosse “a capital secreta do mundo”.

Costumava voltar à terra e levava os amigos. Certa vez, Fernando Sabino foi a Cachoeiro e ficou hospedado no Hotel Itabira, situado no centro da cidade, muito próximo de uma estrada de ferro. Ao passar o trem da Leopoldina, o hotel balançava e as paredes sacudiam em pelo menos meio grau da Escala Richter. Em altas horas da madrugada, Sabino levantou-se, bateu no quarto de Braga e perguntou: “Rubem, a que horas esse diabo de hotel chega a Vitória?”

O próprio Garschagen encarna a mistura desoncertante de seriedade e gaiatice. Assessorou vários ministros em Brasília e, para evitar gafes com os nomes, chamava a todo mundo de Betim. Em contrapartida, os agraciados pagavam com a mesma moeda, devolvendo o infame apelido genérico: “Fala, Betim”.

Garschagen mostra que, do início do século até a virada da década de 1940, Cachoeiro do Itapemirim constituía um polo industrial importante, enquanto grande parte do país era agrária. Essa opulência proporcionou uma educação de qualidade, uma vida cultura rica e diversificada, que minou a tacanhez provinciana, apesar do ar bucólico de cidadezinha do interior. São essas e outras histórias que Garschagen reconstitui com verve e veia de cronista.

Desencantado com os rumos da Semana de Arte Moderna em São Paulo, o historiador Sérgio Buarque de Holanda passou seis meses em Cachoeiro, editando o jornal da cidade, e ganhou o apelido de Doutor Progresso. Consta que em um dos porres memoráveis que tomou, segundo crônica de Rubem Braga, Sérgio Buarque saiu cambaleando pelas ruas, de terno e gravata, dizendo que acenderia o cigarro na Lua. Valeu, Betim!

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