Museu do inconsciente

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Conhecia a pesquisa e o acervo de livros e filmes do Museu do Inconsciente, mas ver as obras dos pacientes-artistas sem intermediários é ainda mais impactante. Elas estão exposta em mostra magnífica no CCBB. A pintura de Emydio Barros corresponde, efetivamente, ao que escreveu Ferreira Gullar: “Emydio é um dos gênios da arte brasileira. Não é comparável a nenhum outro artista, não é pior nem melhor. Fulgura solitariamente”.

Ao trocar os eletrochoques pelos pincéis, a insulina pela modelagem, a violência pelos animais-terapeutas, as verdades esclerosadas da psiquiatria pela pesquisa, Nise realizou uma pequena revolução no tratamento da esquizofrenia. Em tudo, essa mulher alagoana de poderosos radares de sensibilidade foi guiada pelo afeto.

A rebelião contra a psiquiatria começou no dia em que ela ia aprender a aplicar choque elétrico com outro médico. Só de assistir a convulsão do paciente, sentiu horror e se recusou a apertar os botões. Estava comprada a briga contra a psiquiatria oficial.

Ela sempre enxergou pessoas onde os médicos viam pacientes. O único espaço que sobrou para Nise trabalhar foi o de Terapêutica Ocupacional. Na época, era um local tão desprestigiado que nenhum médico se dignava a aparecer por lá. O setor era administrado pelos serventes do hospital.

Mas foi lá que a doutora Nise ensaiou uma revolução humanizadora nos métodos da psiquiatria, muito antes da emergência do movimento da antipsiquiatria irromper na década de 1960, sob o comando do italiano Franco Basaglia e do inglês Ronald David Laing.

Esse trabalho convergiu para a criação do Museu do Inconsciente, centro de estudos e pesquisas que se tornou referência internacional. Além do interesse científico, Nise revelou artistas muito talentosos: Emygdio de Barros, Rafael ou Fernando Diniz. Octávio, um um dos pacientes de Nise, disse: “A esquizofrenia é uma doença em que o coração fica sofrendo mais do que os outros órgãos. Então ele fica maior e estoura.” Muito próximo do que escreveu o poeta russo Maiakóvski: “Comigo a anatomia enlouqueceu/Eu sou todo coração”.

Impossibilitados de se comunicarem com as palavras, os pacientes se expressaram com as imagens e com as modelagens. A doutora Nise interpretou esses sinais do inconsciente de maneira magistral em muitos livros e documentários.

A exposição é, a um só tempo, uma experiência didática e sensível, pois a arte dos pacientes está dividida em três segmentos: a abstração, as mandalas e as imagens míticas. Em vez de falta de sentido, a doutora Nise mostra que a abstração e as mandalas são formas da busca de serenidade e de cura. E as imagens míticas expressam dramas psíquicos vivenciados pelos pacientes:”Não sou uma senhorinha filantrópica, tenho curiosidade pelos abismos”, disse a doutora.

Para Nise, a relação afetiva era tudo. Tive o privilégio de entrevistá-la. Perguntei a ela porque, apesar de tantas pesquisas, a psiquiatria oficial permanecia tão desumana. Ela respondeu que a psiquiatria oficial era um muro sólido e ainda seria preciso muita luta para humanizá-la. A doutora Nise é uma legítima heroína do povo brasileiro: “Se eu não tivesse Lampião embaixo da pele, eu seria esmagada”.

O que a doutora Nise fala sobre os pacientes esquizofrênicos vale para todos nós. Uma mente e um corpo não criativos adoecem: “O que cura é a alegria e a convivência com outras pessoas”. Essa mulher brava, agreste, verdadeira e delicada é uma grande brasileira, uma brasileira cidadã do mundo, que nos comove, nos inspira e nos engrandece.

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