Severino Francisco
Rubem Braga dizia que qualquer narrativa de Di Cavalcanti de uma travessia da ponte Rio-Niterói na barca da cantareira era mais interessante, vívido e fascinante do que o relato de algum mortal que houvesse viajado pela Europa. O pintor que conferiu dignidade à beleza das mulatas brasileiras e as alçou à condição de musas, de madonas tropicais, era muito ligado a Brasília.
Di era um modernista da cabeça aos sapatos e Brasília era o modernismo transformado em cidade. Ele ficou entusiasmado e produziu várias obras sob encomenda para a nova capital. A primeira é uma linda tapeçaria para o Palácio da Alvorada em que mulatas tocam flautas, banjos, violões e flautas.
Di morou pela primeira vez em Paris, no início dos anos 1920, e afirmou que a cidade francesa colocou uma marca de inteligência na vida dele e, como civilizado, conheceu a sua terra e passou a valorizar as rodas de samba, a beleza mestiça e as cenas cotidianas do Rio de Janeiro. Ele estava em Paris, hospedado em um pequeno hotel, quando concebeu o primeiro trabalho para Brasília. A pista para a reconstituição das relações de Di com Brasília vem de uma delicada crônica de Gilda Cesário Alvim, datada de 4 de abril de 1958.
Gilda escreve que a primeira prova tangível da existência de Brasília naqueles tempos ocorreu no quarto do terceiro andar de um hotelzinho barato com nome de trem expresso: Dinard. Instalado por lá, Di Cavalcanti olhava a rua e sonhava com Brasília: “E do sonho de Di Cavalcanti nascem mulheres, sinuosas, envolventes como lianas, mulheres serpentes, que o domador encanta, não com a clássica flauta, mas com pincéis e tintas. A não ser que os papéis aqui estejam invertidos e o encantado seja o encantador. Porque cada mulher leva entre as mãos um instrumento de música. Esta uma flauta, aquela um banjo, outra um cavaquinho. Embalam. Encantam. O presente fazem esquecer. O passado ao futuro ligam, pelo limo que carregam, pelas flores que prometem”.
Em alguns momentos, Di pousava o pincel e esquecia. Sonhava com Brasília. A tapeçaria será em tons de cinza, com grandes manchas azuis que lhe darão vida, sem quebrar a harmonia. Nada que choque, que desafine, evoca Gilda.
Mas quando Di sonha tudo se transforma e ele exerce o poder de encantação verbal sobre todos os habitantes ou hóspedes do hotel. Aos poucos, a paisagem parisiense muda. As paredes se afastam e o sol rasga as nuvens pegajosas. O horizonte se alarga e a imensidão verde se estende sobre os telhados de Paris, lembra Gilda, com o olhar espantado daquele longínquo 1958: “Todo mundo no hotel já sabe e fala de Brasília. Todo mundo já sabe, já fala, já acredita nessa capital extraordinária que vai brotar, um dia destes, no solo fértil e virgem do Brasil”.
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