Severino Francisco
“Poeta da palavra e da imagem”, é a própria Maria Maia que gosta de se autodefinir assim. E, de fato, ela transita por essas duas dimensões com leveza e fluidez. Maria trabalhou durante 20 anos na TV Senado como roteirista e documentarista e produziu 40 documentários, sete longas, 14 médias e o restante de curtas.
Fez belos filmes em que alia a pesquisa documental e a expressão artística. Em qualquer efeméride da cultura, é possível selecionar um filme dela para ilustrar e iluminar a data com a luz do cinema. Na passagem dos 100 anos da Semana de Arte Moderna, dois preciosos documentários de Maria Maia serão exibidos, em sessão dupla, a partir de 10h, no canal da Associação Brasileira de Imprensa: Portinari, poeta da cor (52 minutos), e Semana de Arte Moderna (12 minutos).
No filme sobre a Semana de Arte Moderna, Ferreira Gullar chama a atenção para uma questão importante: os modernistas não apenas lançaram um impulso de renovação da arte brasileira, mas também tiveram a sabedoria de revalorizar a arte barroca mineira do Brasil colonial, reverberada pelo gênio de Aleijadinho. É uma aula brilhante sobre modernismo dada por um poeta e um crítico de arte de alta categoria.
Faço essa observação porque percebo que, no afã de questionar o lugar dos negros e dos índios no movimento modernistas, alguns historiadores e antropólogos vêm publicando e dizendo muitas coisas equivocadas e sem pertinência. Um movimento que suscitou o surgimento de Tarsila Amaral, Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Villa-Lobos, João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, Glauber Rocha, a Tropicália e o Mangue Beat não pode ser tratado com leviandade.
Gostei ainda mais de Portinari, poeta da cor, pois Maria consegue misturar a vida e a obra do pintor de uma maneira envolvente. Narra o filme com a pintura de Portinari entrelaçada com depoimentos (de Antonio Callado, Jorge Amado, Lucio Costa, Athos Bulcão e Glênio Bianchetti, entre outros) e com poemas de Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Desconstrói a imagem de pintor oficial para mostrar toda a dramaticidade que marcou a vida do pintor.
Aos 20 anos, ele pintou o belíssimo quadro Baile na roça, com temas e pinceladas modernistas, rejeitado no Salão do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nasceu em família de imigrantes italianos com um pai tocado de funda compaixão, que recebia em casa os retirantes nordestinos desgarrados no interior de São Paulo e também os doentes de hanseníase.
Com sensibilidade, o pai intuiu o talento do menino para o Rio de Janeiro. O meio mais barato
que encontrou foi morar no banheiro de uma pensão na rua Marquesa de Santos. Até que um dia a caixa do banheiro arrebentou e a dona da pensão conseguiu um quarto com cama para ele. Se tornou amigo do irmão de Nelson Rodrigues, o ilustrador Roberto Rodrigues, que apresentava Portinari assim: “Note bem, esse rapaz é um gênio”.
Em um dos depoimentos, o crítico Jacob Klintowitz sintetiza: “Não é anomalia nascer Portinari no Brasil. Ele é um filho de emigrantes nascido na zona rural. Que pode ser mais brasileiro e mais contemporâneo do que a precariedade e a instabilidade?” Ao fim, entendemos melhor e amamos mais as crianças soltando pipas ou jogando futebol, os retirantes trágicos e os trabalhadores do campo de Portinari. O filme de Maria nos empresta novos olhos para rever Portinari e o modernismo. Ela faz documentários com poesia.
PS: Os dois documentários sobre o modernismo serão exibidos, hoje, a partir das 10h, no site da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) bit.ly/3uZn84f.
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