Severino Francisco
Estou há semanas em dramática contagem regressiva. Embora tenha muitas críticas à alienação monstruosa de nossos jogadores, a verdade é que torço e me retorço quando a Seleção Brasileira joga. Não posso reclamar, tive a sorte de assistir ao Brasil ser campeão em três copas, em 1970, em 1994 e em 2002.
A mais marcante foi a de 1970 e gostaria de evocá-la porque, depois da vitória, os acontecimentos se envolvem em uma aura mitológica, que esconde a dura realidade dos fatos. A defesa do nosso escrete era um teste para cardíaco. Antes da Copa, a Seleção foi vaiada muitas vezes, apesar de ser formada por uma constelação de craques.
A maioria era de uma geração que havia fracassado clamorosamente na Copa de 1966 da Inglaterra: Gérson, Tostão, Jairzinho e Pelé. Apesar de todos os defeitos da parte defensiva, aquele foi o maior time de futebol que pisou nos gramados do planeta.
Como dizia João Saldanha, você não sabia de onde viria o perigo. O escrete tinha cinco craques decisivos: Pelé, Gérson, Jairzinho, Rivellino e Tostão. O jogo estava difícil, de repente, um deles fazia uma jogada que definia o placar. E, daqui a minutos, a vantagem virava goleada de 4×1.
Gérson dava lançamentos de 40 ou 50 metros, que pareciam jogadas de videogame, a bola viajava no espaço, aparentemente sem rumo e caía no peito de Pelé ou Jairzinho na cara do gol. Depois da derrocada da Copa de 1966, diziam que Gérson não tinha sangue. Na Copa de 1970, o meio-campista foi um leão, matava a bola no peito com a maior classe ou dava uma bica que ela saía do estádio, conforme a circunstâncias.
Irritado com a infâmia, Nelson Rodrigues resolveu pedir uma opinião abalizada e telefonou para a Transilvânia para saber o que pensava o conde Drácula. O sinistro personagem experimentou o sangue de Gérson, avaliou e emitiu o veredito implacável: “Sangue bom, do puro, do escocês”.
O jogo do Brasil contra a Inglaterra foi duríssimo, o nosso time recebeu marcação cerrada. Na parte final, quando estava para ser substituído, Tostão recebe pela esquerda, enfia a bola no meio das pernas do famoso beque inglês Bob Moore e fica perto com o gol. Se fosse eu, tentaria vencer o outro zagueiro e ficar cara a cara com o goleiro. No entanto, ele passa o pé sobre a bola, volta e vira para Pelé no lado direito da área, que rola para Jairzinho estufar a rede inglesa.
Tive a oportunidade de entrevistar Tostão e perguntei como ele viu Pelé livre do outro lado, se jogou de costas. Ele explicou que não viu, adivinhou que Pelé estava lá. Driblou a mim, ao câmera, a rainha da Inglaterra e a toda a torcida do planeta em uma das jogadas mais geniais das copas.
Mas voltemos a 2022. No último fim de semana vivi momentos de tensão, angústia e dramaticidade shakespereanas. Recebi um telefonema de Tite me convocando para a Seleção Brasileira que disputará a Copa do Mundo no Catar. É isso mesmo que vocês leram. Tentei desconversar, mas Tite mantinha-se intransigente.
Argumentei que era melhor manter o Casimiro como titular, pois, embora tenha sido antigo peladeiro, não chuto uma bola há mais de 20 anos. Fiquei transido com o medo de rebater uma bola, o atacante adversário pegar e fuzilar as redes de Alisson. O Brasil inteiro comeria o meu fígado, inclusive os estagiários do jornal, turba flamenguista implacável.
Tite contra-argumentou que eu era imprescindível em seu esquema tático e não abria mão da minha presença no esquadrão canarinho. Não consegui convencer o técnico, mas, felizmente, fui salvo pela minha mulher: “Siva, acorda, está na hora de ir para o Correio“. Podem torcer porque o Brasil tem alguma chance, eu não vou jogar a Copa. Foi um sonho, minha gente.
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