Meu pai

Publicado em Crônicas
Crédito: Severino Francisco/Arquivo pessoal.  Meu pai: poeta, pastor presbiteriano e pernambucano quixotesco.

 

Severino Francisco

 

Meu pai, também Severino Francisco, sertanejo pernambucano quixotesco, me deixou muitos legados, os maiores talvez sejam o amor à cultura e à natureza. A sua lembrança é nítida, pois era um personagem fantástico, que parecia ter saído diretamente de um folheto de cordel. Contava o dinheiro em termos de quantos livros e revistas podia comprar.

 

No final da década de 1950, desceu de Gravatá, interior de Pernambuco, até Goiás, sobrevivendo da venda de almanaques, quase todos em versos, que ele mesmo escrevia. Poeta repentista, pastor presbiteriano, realizou o sonho de conquistar um diploma universitário, ao formar-se em teologia, na Faculdade Metodista de São Paulo, aos 50 anos. Mas, muito antes lia revistas de ciência, nas quais hauriu uma aguda consciência ambiental.

Na década de 1950, quando era estudante, escrevia versos pungentes contra a devastação das florestas: “Primeiro uma machadada/e a árvore bela e copada/continua resistindo/depois começa rangindo/feito cana na esteira/e na hora derradeira/ainda se ouve o estalo/a queda, a morte, o abalo/e adeus mata brasileira”.

Para celebrar o meu pai e a luta pela preservação ambiental, publico, a seguir, o poema O fim da Amazônia, escrito na década de 1950. Originalmente, o texto reafirma, em um verso, a ideia equivocada de que a Amazônia seria o “pulmão da humanidade”, corrente na ciência da época. No mais, o poema é tragicamente atual.

 

O fim da Amazônia

 

Devastar a Amazônia

é uma calamidade

pode virar um deserto

e para nossa infelicidade

o Brasil perde o pulmão

que respira a humanidade

porque a sua umidade

circula constantemente

não apenas no Brasil

mas em todo continente

Ásia, África e Europa

dele vive dependente

a fauna a flora e o clima

fatores da existência

SOS para quem?

onde está a consciência?

onde andam os governantes

o que é feito da presidência?

A fauna, a flora o clima

ninguém olha com clemência

é o maior atentado

de homem sem coração

quem comete tal delito

terá um nome maldito

pela próxima geração.

Tais governos ou empresários

um dia serão julgados

quando pósteros professores

mostrarem os mapas alterados

e contarem a seus alunos

os tesouros devastados

aqui foi a Amazônia

a selva dos alagados

a hiléia brasileira

a selva mais intrincada

o Uirapuru fazia sua morada

o índio viveu aqui

o tigre, o puma, o queixada

e agora que coisa feia

um deserto de areia

sem pão, sem vida e sem nada.

O rio dormia na mata

o índio seu habitante

o jacaré, o jaguar,

a capivara e o xavante

a gazela e o campeiro

o cangussu traiçoeiro

e a coruja vigilante

guariba, tamanduás

o papa-mel e o tiú

papa-peixe, tangará

carcará e o urubu

sucuri, anta e mateiro

o pica-pau verdadeiro

e a grande abelha-uruçu.

No rio, o tucanaré

o peixe-boi o dourado

a piranha, o pirarucu

o peixe cego e o pintado

piraquê e outros peixes que

agora estão empilhados.

 

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