Severino Francisco
Existem pessoas no mundo da cultura que não têm a pretensão se colocar no primeiro plano da cena. Mas elas são importantes para fazerem a cultura acontecer. Maria Duarte, que nos deixou na semana passada, aos 85 anos, integrava esse grupo. Era uma animadora cultural, insuflava alma na cultura por onde passou.
Foi diretora do Sesc da 913 Sul, secretária de Cultura do DF e uma das criadoras do Festival da América Latina. Em todos esses lugares, ela fez a cultura acontecer. Tinha a vocação de agregar, mediar, propiciar e viabilizar. Acreditava que a arte pode criar cidadãos e seres humanos melhores. Sob a sua liderança, o Sesc da 913 Sul tornou-se um ponto de referência e um núcleo de irradiação da cultura na década de 1980.
É possível imaginar que ela dispusesse de um arsenal de recursos econômicos e de espaços. Mas, não. Só dispunha de bom ânimo, vontade de fazer e capacidade de agregar. O Sesc da 913 Sul tinha uma garagem subterrânea que era uma armadilha perigosa para os motoristas. A rampa com inclinação muito elevada tornava as avarias na lataria dos carros quase que inapeláveis, a ponto de o local ser abandonado.
Mas, com a mira em ampliar as atividades do Sesc, Maria vislumbrou a possibilidade de transformar o espaço em teatro. E, assim, em 1979, nasceria o Teatro Garagem, que parece ter sido concebido deliberadamente para ser um espaço underground da cultura. Daquela garagem sairiam experimentações que fariam história na cultura da cidade.”Você entra com a cara e com a coragem. Nós, com o Garagem”, convidava o poeta TT Catalão.
Hugo Rodas só decidiu ficar em Brasília porque recebeu um convite para ministrar aulas e oficinas no Sesc da 913. Trabalhava, simultaneamente, com grupos de jovens e de idosos. Foram cinco anos de experimentações com a fusão entre teatro e dança, que impactaria a história das artes cênicas em Brasília.
A garagem tremeu com a onda do rock dos anos 80 em seus espaços: Raimundos, Aborto Elétrico e Cássia Éller passaram por lá. E, com o fechamento dos teatros Galpão e Galpãozinho, no início da década de 1980, o movimento cultural foi transferido para o Sesc da 913 Sul. A Feira de Música e o Jogo de Cena, apresentado por Hélder e Pipo, se mudaram para lá.
Não era preciso ter um currículo consolidado para se apresentar no Garagem. Bastava a audácia e a vontade de fazer. Assisti com uma pequena plateia a um show muito inventivo do grupo Música-À-Tentativa, liderado por João Rochael, que aliava artes cênicas e experimentalismo sonoro, com instrumentos de material reciclado criados por Márcio Vieira. Na plateia, estavam Marcelo Beré e Luciano Porto, do Udigrudi.
Mais tarde, as duas experiências se fundiriam no Udigrudi, que decolaria em carreira internacional, depois de ganhar o Herald Angel, prêmio principal do Festival de Fringe de Edimburgo, na Escócia, o mais importante evento de teatro do mundo.
Maria Duarte está nos bastidores de todas essas experiências da cultura brasiliense na década de 1980. Tinha alma coletiva. Ela era séria, mas amiga da cultura, da experimentação e da festa.
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