Severino Francisco
No final da década de 1990, soube que o poeta Manoel de Barros estava em Brasília, numa exposição no Congresso Nacional. Peguei um gravador e fui lá para entrevistá-lo. Ele me recebeu de maneira muito cordial, com os olhos faiscantes de menino que aprontou alguma. No entanto, negou a entrevista ao vivo, de maneira delicadamente firme: “Entrevista, só por escrito. E aviso que a resposta pode demorar”.
Seis meses depois, quando havia me esquecido do encontro, recebo uma carta dos Correios com a letra desenhada de Manoel de Barros e as respostas à entrevista. Ao ler as respostas, compreendi, imediatamente, o sentido do que parecia ser mero capricho. Manoel insistiu em conversar por escrito porque queria transformar a entrevista em um acontecimento poético: “Só as coisas pequenas me celestam”, escreveu em uma resposta e, logo em seguida, o trecho apareceu em um dos poemas publicados em livro.
Manoel teve um memorável encontro com Guimarães Rosa no Pantanal, evocado na revista Bric a Brac, editada por Luis Turiba e João Borges (sim, aquele mesmo comentarista de economia da GloboNews). Manoel é uma espécie de Guimarães Rosa lúdico da poesia; e Rosa é uma espécie de Manoel de Barros trágico da prosa. Os dois gênios têm muitas afinidades.
Em um filme de Júlio Bressane, Oswald de Andrade faz uma declaração de total identidade ao se deparar com Lamartine Babo. Pois bem, Rosa também poderia dizer a Manoel quando o encontrou no Pantanal: “Manoel, você sou eu”.
De maneira similar ao que ocorreu com a minha entrevista, o pantaneiro transformou a conversa com Rosa em um acontecimento poético. “Havia o caramujo perto de uma árvore. Rosa disse: ‘Habemos lesma, Manoel’. Eu disse: ‘Caramujo é que ajuda árvore crescer’. Ele riu. Relvas cresciam nas palavras e na terra. Rosa escutava as coisas. Escutava o luar”.
Em seguida, Rosa teria perguntado: “E como é o homem aqui, Manoel?” E Manoel replicou nervoso: “O homem se completa com os bichos – eu disse – com os seus marandovás e com as suas águas. Esse ermo cria motucas. Aqui é brejo, boi e cerrado. E anta que assobia sem barba e sem banheiro”. Rosa quis saber também o nome de árvores: “Aqui sabemos é por instinto e por apalpos. Não é como o senhor faz com as palavras”.
Mas, no livro Retrato do artista enquanto coisa, Manoel transformou o diálogo imaginário em verso de poesia: “Levei Rosa na beira dos pássaros que fica no meio da Ilha Linguística./Rosa gostava muito de frases em que entrassem pássaros./E fez uma na hora:/A tarde está verde no olho das garças./E completou com Job:/Sabedoria se tira das coisas que não existem./A tarde no olho das garças não existia/mas era a fonte do ser. Era poesia./Era o néctar do ser”.
Adiante, Manuel prossegue em narrativa fragmentada: “Rosa gostava muito do corpo fônico das palavras./Veja a palavra bunda, Manoel/Ela tem um bonito corpo fônico além do propriamente./Apresentei-lhe a palavra gravanha./Por instinto linguístico achou que gravanha/seria um lugar entrançado de espinhos e bem/emprenhado de filhos de gravatá por baixo. /E era.” Manoel escreveu que se não fosse a poesia todos nós seríamos robôs. E seríamos.