Severino Francisco
Mangue-mundo – Poéticas do mangue em Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto e Chico Science (Ed. Sigla Viva). Só o título já é bastante convidativo. Para celebrar a passagem dos 100 anos de João Cabral de Melo Neto, o poeta brasiliense Francisco K escreveu esse ensaio inovador. Tive a honra de fazer a orelha do livro sobre esses três pernambucanos essenciais. E, por isso, compartilho agora com vocês.
“Na década de 1990, Chico Science e a Nação Zumbi tomaram de assalto a cena como se fosse um ataque avassalador de cangaceiros. Mas, em vez de fuzis, eles empunhavam guitarras, baixos, tambores e violência poética. A performance passava a sensação de um maracatu atômico atropelando tudo que encontrasse pela frente.
O que estava em jogo era uma revolução cultural só comparável à Tropicália. Uma Tropicália pernambucana, mais contundente, dramática, trágica, social e política. A parabólica foi plantada no mangue. No caso do movimento manguebeat, lama é insurreição.
Em Mangue-mundo, livro conciso, mas agudo, Francisco K empreende uma interpretação inovadora sobre as complexas relações entre Josué de Castro, João Cabral de Melo Neto, a estética da fome de Glauber Rocha e Chico Science. Em vez de depreender Chico da tradição, K estabelece a conexão entre essas vertentes a partir da estética manguebeat.
Pode parecer gratuito. No entanto, nesta perspectiva, a partir da releitura de O cão sem plumas, Cabral reponta na condição de poeta também visceral, em tensão com o aspecto construtivo. Para além de uma educação pela pedra, uma educação pela lama, na qual a poética do mangue ganha intensidade, com a interpenetração entre os homens e a terra viscosa.
Os homens-caranguejos de Josué e os homens-lama de Cabral passam por uma metamorfose. Abandonam a situação estática e se transformam em mangueboys ou manguegirls, errando, fisicamente e imaginariamente, na cidade assaltante da periferia do capitalismo. Entre a lama e o caos, entre a lama e o ciberespaço, antenando boas vibrações.
Recife é uma cidade anfíbia, que quase nasce das águas dos rios, do mar e do mangue, como diz Gilberto Freyre. E, de fato, o mangue é concebido no manifesto manguebeat, a um só tempo, como habitat natural e ecossistema cultural, rico em sugestões simbólicas, poéticas e políticas, o que ressalta nos versos de Chico: “Esse corpo de lama que tu vê/É apenas imagem do que sou/Esse corpo de lama que tu vê/é apenas a imagem que é tu/Fiquei apenas pensando que seu corpo parece com as minhas ideias”.
A música-poesia de Chico, boa da cabeça e um foguete no pé, se contrapõe às músicas boas do pé, mas ruins da cabeça (grande parte do funk carioca e a axé music) ou às ruins do pé e da cabeça (a vertente breganeja). Em uma era de vibrações baixas, que nos empurram para a distopia, K nos empresta novos olhos para delinear uma poética do mangue perpassando o pensamento inseminador de Josué, a poesia afiada de Cabral e a música-utopia libertária de Chico Science”.