Severino Francisco
O dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906) teve dois leitores apaixonados no Brasil: Nelson Rodrigues e Dias Gomes. Nelson viveu na pele o drama da solidão extrema em face da estupidez da opinião pública, enquanto Dias Gomes buscou inspiração na peça clássica do teatro moderno O inimigo do povo (1882), uma das obras-primas de Ibsen, para compor a telenovela Roque Santeiro.
Ibsen não é apenas um precursor; é um dos inventores do drama moderno, pois colocou no centro do debate as grandes questões do nosso tempo. É um dramaturgo da cabeça aos sapatos, capaz de erguer diante dos nossos olhos cenas de alta voltagem dramática. Polêmico, crítico e provocador, em pleno século 19, ele teve a audácia de discutir a violência doméstica na peça Espectro.
O terrível escândalo provocado pela encenação o inspirou a escrever O inimigo do povo, peça que parece ter sido imaginada em 2020, especialmente para a situação dramática de pandemia, na qual estamos mergulhados. Em cena, Ibsen projeta o drama do protagonista, o doutor Stockmann, sabotado pelos cidadãos depois de denunciar a contaminação do balneário que sustenta uma cidadezinha do interior.
No fundo, o que está em jogo é o duelo entre a ciência e os interesses econômicos, a ciência e a ignorância, a ciência e a insciência. Ao defender o interesse público, o doutor Stockmann se torna cada vez mais isolado e solitário: “Farei grandes revelações, meus concidadãos!”, diz o doutor Stockmann: “Desejo compartilhar com os senhores uma descoberta sem precedentes. Não se trata do envenenamento da nossa tubulação de água, tampouco da localização dos nossos banhos sanitários em solo pestilento”.
Muitas vozes se levantam, aos brados: “Não fale dos banhos! Não queremos ouvir. Não diga nada sobre isso”. Mas o Dr. Stockmann não se intimida: “Como disse, em vez disso tratarei dessa grande descoberta que fiz recentemente. Descobri que todas as nossas fontes morais estão envenenadas e toda a nossa sociedade repousa sobre o solo pestilento da mentira”.
O século 19 colocou em cena heróis que resistiram tragicamente à massificação, como é o caso de Stockmann. Nelson Rodrigues sentenciava que toda unanimidade era burra. Mas, agora, o nosso desafio é criar, não digo uma unanimidade inteligente, mas, pelo menos, uma maioria inteligente em torno de questões essenciais: a democracia, a educação, a primazia da vida, a orientação da ciência, a preservação do meio ambiente, o desaquecimento global, a agricultura sustentável e a justiça social. É disso que depende o presente e o futuro nosso, dos nossos filhos e dos nossos netos.
Os países que alcançaram essa condição, como é o caso da Nova Zelândia, foram os que enfrentaram a pandemia com o maior êxito. Sem a ciência, estamos expostos a um novo normal, a um normal fake. Esqueceram de combinar com o vírus.
Estabelecer a civilidade e a responsabilidade nas redes sociais é um passo importante no sentido de estancar um dos mananciais da mentira. Os sábios não podem ser governados pelos néscios.Tudo depende da nossa capacidade de conquistar uma maioria inteligente.
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