Severino Francisco
Como entrei para o jornalismo? Eu mesmo me pergunto e tenho dificuldade em responder. Tudo aconteceu em um lance do acaso, que tem muita influência sobre as nossas vidas. Não abro mão da análise racional, mas acredito nos presságios, nos sinais e nas intuições, pois os deuses não param de jogar seus dados.
Eu tinha 19 anos, e não sabia que rumo dar à minha vida. Conectei-me com a literatura, a filosofia e as artes por uma razão existencial dramática. Meu pai era pastor presbiteriano, a cada 4 anos se mudava para uma cidade diferente com o objetivo de cumprir uma missão. Dos 12 aos 16 anos, morei em São Paulo.
Aos 15 anos, assisti a uma cena que provocou em mim uma intensa revolta. Os meus amigos costumavam segurar os gatos pelo couro e atirá-los nos muros para ouvir o grito dos felinos. Quando os animais se assustavam, a turma soltava urros e gargalhadas. Desde essa época, passei a ter horror ao riso despropositado dos covardes.
No entanto, certo dia, fui tomado por violenta comoção e me insurgi contra a turba, chamando a todos de imbecis. As reações foram mais apupos, grunhidos e chacotas. Fiquei me achando o último dos homens, culpado de ser um E.T., com um olho no meio da testa, pois não conseguia achar graça no que todos riam.
A partir daquele dia, rompi com os amigos, mergulhei em um silêncio quase absoluto e passei a ler, desesperadamente, em busca de orientação para as experiências que eu vivia.
Fazia uma varredura pela biblioteca de meu pai e comecei a ler o romance Crime e castigo, de Dostoiévski. Lá pelas tantas, o possesso escritor russo narra uma situação estarrecedora. O personagem adolescente Raskolnikov assiste à cena do espancamento infligido por um camponês a um cavalo, que começa a sangrar.
Desesperado, Raskolnikov se posiciona em frente e se abraça com o cavalo ensanguentado para protegê-lo das chibatadas. De maneira semelhante, ouviu achincalhes e urros da plateia. Aquele leitura de Dostoiévski me salvou; percebi que talvez a minha revolta não fosse tão ridícula quanto eu pensava.
Talvez o meu gesto tivesse até algo de heroico e não apenas de patético. Eu tinha 15 anos, mas tomei uma decisão e comuniquei aos meus: não permaneceria mais em São Paulo, voltaria a Brasília. Eles aceitaram o retorno e eu vim parar no Planalto Central em 1970. Enveredei por muitas leituras.
Certo dia, um amigo foi fazer inscrição para o vestibular de uma faculdade particular e me chamou para acompanhá-lo. Fui e, ao chegar, ele insistiu para que eu me inscrevesse em algum curso. Por eliminação, cheguei ao jornalismo. Não estudei nada e, para a minha surpresa, fiquei em terceiro lugar. O amigo, que era um tremendo gozador, comentou: “Só havia dois concorrendo ao vestibular?”
Entrei para fazer estágio, com ceticismo, mas desde que botei os pés em uma redação, nunca mais abandonei o jornalismo. Concordo com Gabriel García Marquez: com todos os problemas, é a melhor profissão do mundo.
Apesar de ser um repórter distraído, fazer jornalismo, para mim, é algo tão natural quanto respirar. Dostoiévski e o acaso me empurraram para o jornalismo. Hoje, é Dia do Jornalista, mas, todos dia é dia do jornalista. E vejo que, apesar de toda a depreciação inseminada pelos que bombardeiam fake news em busca da servidão voluntária, nunca o jornalismo foi tão crucial quanto hoje para a sobrevivência da democracia.
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