Severino Francisco
O cineasta e jornalista Arnaldo Jabor, que nos deixou na terça-feira, viveu muitas histórias divertidas com Nelson Rodrigues, o nosso profeta do óbvio. Jabor serviu o Exército com Jofre, filho mais velho de Nelson, e pediu um encontro para que o dramaturgo liberasse os direitos da peça Toda nudez será castigada para um filme.
Ao chegar, Jabor expôs o projeto, Nelson olhou atentamente para o jovem cineasta e perguntou: “Você fez algum filme antes?” Meio envergonhado, Jabor confidenciou: “Sim, eu fiz Pindorama, que inclusive foi um grande fracasso de crítica e de público”. Ao ouvir a declaração do revés de maneira tão franca, Nelson se comoveu fundamente e comentou: “Parabéns, meu filho. O homem não é nada sem um fracasso. O fundamental é fracassar. Eu libero os direitos”.
Na virada daquela década de 1960 de revoluções por minuto, Jabor era militante das esquerdas. Em uma de suas crônicas, Nelson lembra do amigo com um humor singular. Segundo ele, nos comícios era possível divisar Jabor, com os quase 2 metros de altura, empunhando um picolé Chicabon e, no intervalo de uma lambida e outra, levantar os punhos e bradar: “Revolução, revolução, revolução”.
Todo diálogo com Nelson Rodrigues era imaginário, pois ele inventava situações dramáticas o tempo todo com os amigos. Nunca deixava de fazer teatro quando falava e quando relatava o que havia falado. Jabor contava que as conversas com o nosso profeta do óbvio eram rituais e tinham um texto invariável. Ao ligar o telefone, perguntava: “Quero falar com o Nelson”. E, do outro lado da linha, o nosso profeta do óbvio respondia: “É o Nelson, eu sou o office-boy de mim mesmo.”
“Mas será que as coisas estão tão difíceis assim mesmo para você?”, replicava o cineasta. Ao que, Nelson, leitor obsessivo de Os maias, de Eça de Queiroz, comentava, citando trecho do célebre romance, relido inúmeras vezes: “Sou apenas um pobre homem da Póvoa de Varzim, que só tem a manteiga para lhe barrar no pão. Se você encontrar um ceguinho no centro da cidade, pedindo esmola, pinga uma moedinha no chapéu porque sou eu”.
Eu discordava de algumas opiniões políticas de Jabor, porque ele apoiava reformas contra os desvalidos, reformas covardes, como se fossem um signo de modernidade, quando agravam ainda mais as desigualdades, o atraso contra o qual ele bradava com veemência. O amigo Nelson Motta, se não me falha a memória, disse em entrevista que Jabor escrevia certo, mas, algumas vezes, pensava errado, do ponto de vista político. Talvez por ter sido um esquerdista desencantado, embora sempre interessado no país, sempre com o Brasil na cabeça.
Tem uma frase atribuída a Jabor, que irritou muito alguns brasilienses, mas, que, na verdade, ele surrupiou de Nelson Rodrigues: “Em Brasília, todos são cúmplices”. Diferentemente de Rubem Braga, que destilava fino veneno contra a nova capital, Nelson veio aqui no dia do aniversário da cidade e sentenciou, em crônica memorável: “Brasília é a derrota dos cretinos”. Mais tarde, ele escreveu a frase citada por Jabor.
Pois, eu concordo inteiramente com a provocação, ela não nos desmerece. O brasiliense não pode aceitar passivamente aos descalabros que lhe são impostos pelos governantes. Isso afeta a imagem de Brasília. Não vale apenas para Brasília, em qualquer cidade, todos, em alguma medida, somos cúmplices do que acontece no nosso quintal, com as nossas ações e omissões.
Como se vê, o diálogo entre Jabor e Nelson foi fecundo, provocador e bem humorado: “Não se preocupe rapaz, daqui a pouco vamos nos lembrar desse tempo como um ‘fascismo de galinheiro’. Fascismo é a burrice no poder, rapaz….”, disse Nelson, em entrevista imaginária profética concedida a Jabor.
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