Severino Francisco
Como se sabe, eu sou um usuário ou, melhor, fui, durante muito tempo, um usuário do transporte público de Brasília. Há uns cinco anos, a minha mulher saía de carro do condomínio onde moro, quando um rapaz que conhecemos, pediu carona. Ele estava enfaixado do lado esquerdo. Contou que havia levado uma facada numa tentativa de assalto na Rodoviária. Não reagiu, mesmo assim, foi agredido por uma turma de adolescentes noiados.
Eu acho que uma das maiores distorções de Brasília é a depreciação do transporte público. Quem circula de ônibus ou de metrô é desclassificado na condição de cidadão de terceira classe. Escrevi várias vezes sobre o tema e, para meu espanto, um colega de redação muito jovem fez o seguinte comentário: “Sabe que eu nunca havia pensado nisto?”.
O resultado a gente percebe nas ruas: congestionamentos, filas intermináveis, carros estacionados em calçadas e estresse. Durante muito tempo, circulei de ônibus, mas, depois do episódio do rapaz esfaqueado, deixei de ser um usuário, pois a Rodoviária se tornou um lugar inseguro e perigoso. Isso ocorreu há cinco anos e, em vez de melhorar, a situação piora a cada dia. O problema permanece tratado com a cordial indiferença burocrática.
Bem, eu pude me dar ao luxo de abrir mão do transporte público. Mas o que acontece com os 700 mil brasilienses que todos os dias precisam tomar ônibus para ir ao trabalho e voltar para casa? A Rodoviária está lista dos problemas, aparentemente, insanáveis e insolúveis. Ela passa por um processo de degradação há muitas décadas.
Não deveria ser assim, ela mereceria um tratamento mais digno pela relevância arquitetônica e pelo respeito aos cidadãos. Ela é, ao lado da Torre de TV, o único projeto arquitetônico do criador do plano urbanístico de Brasília, Lucio Costa.
No livro O risco – Lucio Costa e a utopia moderna, que reúne depoimentos do filme de Geraldo Motta Filho, sobre Lucio Costa, o arquiteto Ciro Pirondi afirma que o vazio de Diamantina foi a grande inspiração do urbanista criador de Brasília. E a Rodoviária seria a concretização desse pensamento. “É um exemplar único, maravilhoso. Ali, ele fez o que todo arquiteto deseja fazer: o não edifício”.
Pirondi comenta: é uma aula de como realizar um edifício resolvendo toda a articulação da cidade: ora some, ora aparece, e você chega sem saber que chegou: “Assim é a rodoviária, por isso ele fez tanta questão de desenhá-la -é um projeto seu. Não queria uma obra que fosse ‘o edifício’, competindo com as edificações belas ali ao lado – a Catedral, o Teatro Nacional, ou o próprio Eixo Monumental, que faz a linha transversal e longitudinal da cidade. Ela é uma permanente fonte de inspiração para nós”.
A plataforma da Rodoviária é um ponto privilegiado para contemplar a Esplanada dos Ministérios. Não merece tamanho descaso. É inaceitável que seja relegada à condição de problema insanável e insolúvel. No mínimo, precisaria de policiamento ostensivo. Tomar o ônibus não pode significar correr risco de vida no centro da capital do país.
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