Armando Freitas Filho, considerado um dos mais importantes poetas brasileiros vivos, é o nosso correspondente de guerra no Rio de Janeiro: “Cada dia é uma bala de roleta- russa”, escreveu em um poema. Armando veio duas vezes a Brasília, uma em 1991 e outra em 2002. Pedi ao amigo que desse as suas impressões. A chegada de avião foi algo estranho para os seus olhos (ainda) virgens da capital modernista. Parecia que estava avistando uma maquete gigantesca, uma maquete que já aconteceu. Quando o avião baixou, percebeu que aquele projeto enorme funcionava, os carros circulavam, os bonecos eram pessoas se movendo e as luzes piscavam iluminando uma cena verdadeira.
Passado o frenesi visual, quando desembarcou, sentiu que estava pisando na famosa terra vermelha. Não enxergava, mas intuía. Curiosamente, cada mirada de olho era como se batesse uma foto. Piscava e aparecia a Catedral Metropolitana de Brasília, o Palácio do Planalto ou o Palácio do Itamaraty: “Era como se meu olho fosse uma câmara. É como se eu estivesse passando a limpo aquelas imagens de revistas, confrontadas agora ao vivo, sem as retículas das fotos”.
Mas uma das impressões mais intensas de Armando em Brasília aconteceu na visita à Catedral Metropolitana de Brasília, na Esplanada dos Ministérios. Ele entrou por um túnel escuro e, de repente, sentiu como se tudo explodisse silenciosamente em luz. Inclusive essa impressão era mais forte ainda porque havia anjos barrocos que voavam pela nave. “Era como sentir Deus visível, em uma igreja ultramoderna, feita por um ateu. O que não senti nas igrejas convencionais ou clássicas.”
Era uma sinfonia silenciosa, mas Armando viveria uma experiência mais íntima ao visitar o Palácio da Alvorada e entrar na simpática capelinha, que fica ao lado da residência oficial do presidente. “Entrei e me senti envolvido por aquela folha de papel almaço dobrada, com uma bela cruz e um peixe no teto. E o lugar tinha um cheiro muito peculiar de mármore e alma. Era um cheiro branco. Foi uma revelação pura. É impressionante como um arquiteto comunista e ateu chega tão perto de Deus”.
Em sua caminhada, de repente, se deparou com um grande mural de Athos Bulcão que parecia um mar parado, uma muralha de mar, uma muralhamar. “O Athos é um artista fantástico, ele combina maravilhosamente o azul e o branco. E todo mundo só fala no Oscar Niemeyer. À noite, Armando caminhou com o poeta Hermenegildo Bastos pelas superquadras e gostou muito de andar embaixo dos blocos, passando de um prédio para outro, embaixo dos pilotis, seguindo erraticamente em qualquer direção. Percebeu a urbanização solidária de Lucio Costa: “Encontramos pessoas conversando, mulheres alegres, um clima gostoso de cidade de interior numa capital, uma sensação de sanduíche misto. E quente.”
Da outra vez que veio a Brasília, Armando ficou extasiado com o prédio do CCBB, mas estava tenso, pois naquela fatídica madrugada o Brasil jogaria com a Inglaterra pela Copa do Mundo de 2002. No entanto, Armando ficou feliz, pois reencontrou Vladimir Carvalho: “Gosto muito de Barra 68, que conta a história da invasão da UnB, é um marco do documentário brasileiro”. Se não morasse no Rio, Armando escolheria Brasília ou Belo Horizonte.
PS.: Armando ficou tão entusiasmado com as suas epifanias brasilienses que prometeu escrever um poema sobre Brasília, a partir deste depoimento para a crônica. Três semanas depois, Armando enviou por e-mail o poema.
BRASÍLIA, PELO TELEFONE
p/ Severino Francisco
O céu é o mar de Brasília
Lucio Costa
aviso
A voz, ao vivo, no seu ouvido
teve mais calor, ou a lembrança
construída e imaginada: agora
por escrito, tudo irá parecer
que perdeu o suor, se enxugou.
aterrissagem
Essa cidade chegou de avião
desde a planta, sinal da cruz
sim, mas também de asas
procurando pouso no planalto:
maquete branca, imóvel
por natureza, e nela inserida
logo se anima: lago, os carros passam
as pessoas andam, há vento
e o que parecia simulação
em cima da terra vermelha
(não mais aparente, porém
sentida) é o chão pensado, passado
a limpo, debaixo do céu, que usa
azul a rigor, com nuvens de anúncio.
É a praça aberta até o horizonte
que secou seu cimento cinza
sem uma ruga no quarador solar.
a pé
Ao piscar parecia que tirava
fotos corrigidas, dos palácios
monumentos, muito conhecidos
só que agora sem a retícula
das sucessivas impressões
que chegavam à prova final.
Piscava e aparecia uma catedral
por onde se entrava através
de um piso subterrâneo, escuro
para merecer a explosão silenciosa
da luz em plena nave feita
para os anjos, fora do tempo, voarem.
Ou em outro piscar, breve, o que vinha
era a pequena capela do palácio
feito uma folha de papel almaço
enrolada sem pauta e escrita
que trazia como timbre, a marca da cruz
com um cheiro de cal virgem, de alma
que uma mão de tinta, de mármore
procurava salvar da inevitável mancha.
Sob o sol a pino, repentina, a paisagem
se molha, com o mar parado de azulejos
de Athos Bulcão – muralhamar azulando
lava os olhos de quem tanto viu durante
o dia que se encaminha para noite, que
cai
(pano lento, ou rápido?) com a alvorada
do palácio acentuado pela lua, que reveste
o acabamento, a nudez, de toda
construção.
partir
Dois dias foi minha parti: mesmo
se tivesse mil e uma noites não saberia
contar e decorar Brasília, o código
de suas ruas e superquadras, da sua vida
como Clarice em cinco, que conseguiu ver
até a beleza das “suas estátuas invisíveis”
com seu ar rarefeito, mas pude respirar o céu.
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