Guilherme Reis 2

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Carmem Moretzshon e Guilherme Reis formaram um dos casais mais incríveis da história de Brasília. Eles eram atraídos e conectados de maneira inapelável pelo amor e pelo amor ao teatro, 24 horas por segundo. Guilherme era uma das pessoas que conferiu alma a Brasília, com o dinamismo, a inquietação, a generosidade e a capacidade de sonhar e de transformar os sonhos em realidade.

Ele teve importância crucial como ator, diretor, produtor e gestor cultural, com passagem marcante como Secretário de Cultura do DF. Nos deixou em 24 de setembro, e seu corpo foi cremado. Alguns dias depois de sua morte, Carmem sonhou com Guilherme. E ele disse para ela: “No dia seguinte, ia acontecer uma coisa muito importante.” Carmem acordou inquieta: “O que seria?”

Quando abriu a porta do escritório onde Guilherme trabalhava, ela levou um susto. Havia um passarinho pousado na cadeira. O passarinho saiu adejando por todos os cômodos da casa. Ela abriu a janela e ele voou rumo ao céu de Brasília. Hoje, 24 de novembro, é dia do aniversário de Guilherme. Carmem e os familiares do Guila espalharão as cinzas dele nos pés de árvores da cidade. Tocada pelo mistério, Carmem escreveu o seguinte texto para celebrar Guilherme Reis.

“Andar de bicicleta com os amigos por caminhos ainda não abertos no Cerrado. Pisar na terra vermelha, fazer guerrinha de mamona, sentar na caixa da CEB e ficar olhando o ainda pequeno movimento do que viria a ser uma das principais avenidas da cidade. Entrar correndo em casa ao escutar o ruído dos tanques de guerra e as botas marchando.

Atravessar de mãos dadas com Rogério Costa Rodrigues para assistir aos filhos do nascente Cine Cultura, ocupar a Praça 21 de Abril, jogar bola nos gramados da quadra o dia inteiro. Voltar sujo de terra para casa, brincar de brigar com os irmãos. Espalhar talco no piso do quarto, escorregar… Consigo visualizar o que você me contava. Quanta vida, meu amor!

Você forjou Brasília, uma Brasília feita de arte, do teatro que você descobriu aos 17 anos, pela fresta da porta de uma escolha e pensou: “A gente pode fazer isso na vida? ” Nunca mais quis outra coisa. Você criou grupos, movimentos, projetos. Se ninguém sabia como concretizar uma ideia, você procurava, vasculhava, aprendia, inventava.

Você foi tudo no teatro: ator, diretor, iluminador, cenógrafo, figurinista, roteirista e, sobretudo, produtor. O melhor de todos. Você criou o festival que formou uma geração de artistas e produtores no Distrito Federal. Mostrou para o país que havia vida criativa aqui além da Esplanada dos Ministérios.

Quando foi convidado a ocupar um cargo para o qual eu nunca conheci alguém mais apropriado, você não só aceitou como revolucionou a gestão cultural não só de Brasília, mas do Brasil, ao implementar a Lei Orgânica da Cultura, recuperando e reformatando os mecanismos do fomento. Sua forma coletiva de trabalhar, sua positividade, sua fé na vida e seu bom humor mostraram que leveza, empatia, ética e carinho são revolucionários.

‘Dar a mão a alguém sempre foi o que esperei da felicidade”. Essa frase de Clarice Lispector, que eu li ainda na juventude, sempre fez todo sentido para mim. Desde que nos encontramos no caminho do amor, agradeci a cada manhã ter sido escolhida por você para andar de mãos dadas pela vida. Sei que fui agraciada com sua presença luminosa, que me legou uma família acolhedora, uma fortaleza nestes momentos tão difíceis sem você.

“É estranho que o mais intangível seja o mais permanente”. As palavras de Emily Dickinson viraram quase um mantra para mim. É estranho mesmo seguir sem você. As poesias compostas (e esquecidas) na madrugada, os sambas sem rima e muita graça, as declarações de amor sempre surpreendentes, as brincadeiras no café da manhã, o sorriso matinal, o beijo noturno. Quanta coisa, meu amor.

Mas, hoje, eu te louvo, te agradeço e te saúdo. Voa em paz, meu passarinho. Você fez a sua parte. Nós vamos ficar bem”.

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