Flor do Cerrado

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Eu estava de férias quando Caetano e Maria Bethânia se apresentaram no Mané Garrincha para mais de 60 mil pessoas. Mas o alumbramento com o show continua ressoando por meio de vários amigas e amigos com quem conversei. “Até agora, estou em êxtase com os filhos de Dona Canô”, me disse uma amiga nesta semana. Como o show terminou e, no entanto, ainda está no ar, voltarei ao assunto.

Em todos os lugares por onde passou, Caetano e Bethânia homenagearam cada cidade com uma música, que se tornou uma das grandes surpresas e atrações do espetáculo. Em Fortaleza, eles cantaram Mucuripe, de Fagner e Belchior, premiada no I Festival de Música Jovem do Ceub. Já em Olinda, a música foi Festa, de Gonzaguinha. Enquanto isso, para celebrar Belém, os filhos de Dona Canô escolheram Voando pro Pará, parceria de Crystian Lima, Isac Nadail, Nick Oliveira e Valter Serrana.

Eu acho que é um privilégio ser contemporâneo de Caetano Veloso, pois ele sintetizou na música popular o melhor da cultura brasileira moderna: a Bossa Nova, o Cinema Novo, Roberto Carlos, Glauber Rocha, o Cinema Experimental, João Cabral, Carlos Drummond e a Poesia Concreta. Mas do jeito dele, no fim, tudo virava Caetano Veloso.

Flor do Cerrado, a canção que celebrou Brasília no show, é um exemplo do talento de Caetano para falar de múltiplas coisas ao mesmo tempo em uma letra que vai estabelecendo conexões entre os temas, como se fosse um filme de Godard em uma montagem fragmentária de choque. Cada verso puxa um assunto e cola com outro em um papo pra lá e Marrakeshi sob o sopro de uma linda melodia: “Todo fim de ano é fim de mundo/E todo fim de mundo é tudo que já tá no ar/Todo ano é bom, todo mundo é fim/Você tem amor em mim/Mas da próxima vez que eu for a Brasília/Eu trago uma flor do Cerrado pra você”.

Em um encarte de um livro sobre a história de suas canções, Caetano conta, com Flor do Cerrado, pretendeu homenagear Brasília, pois gosta da cidade e tinha vários amigos por aqui. Lembro de Fernando Lemos, Vera Catalão e Vladimir Carvalho, colega do curso de filosofia na Universidade Federal da Bahia.

Fiquei imaginando qual flor do Cerrado teria inspirado Caetano a compor a canção. A caliandra é uma flor em flama vermelha e sensual na paisagem árida. É como se o fogo, incorporado ao ciclo de vida do cerrado, se transformasse em flor. O pepalanto, apelidado de chuveirinho, tem hastes que sugerem antenas, chuva surreal em riste para cima. É improvável que seja a canela-de-ema com suas flores lilases de miolo amarelo, que brotam em março e abril.

São flores bravas, vencem a atmosfera árida, a oscilação entre períodos de seca e períodos de chuva e a devastação do fogo. Segundo Ana Miranda, elas são de outro planeta.Mais de 60 mil pessoas (de várias gerações) assistiram ao show de Caetano e Bethânia no Mané Garrincha. É público e clima de Fla-Flu.

Caetano ficou muito comovido e escreveu: “Ainda sem palavras para agradecer o jardim de flores do Cerrado que nos recebeu em Brasília.” Pelo que entendi ele estava falando de maneira simbólica. Mas, da próxima vez que Caetano vier a Brasília, alguém poderia dar a ele algumas flores verdadeiras do Cerrado.

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