Severino Francisco
Ontem, durante todo o dia, tentei me proteger do impacto da tragédia do incêndio que matou 10 meninos da base do Flamengo, no Ninho do Urubu. Logo de manhã, uma leitora, que já se transformou em amiga, me deu a triste notícia na padaria. Mas, à noite, quando saía da redação e retornava para casa, fui atingido em cheio pelo acontecimento dramático e revoltante.
A minha esposa veio me buscar e, quando chegou, o rádio estava ligado em uma sonorização de imaginários lances jogados pelos 10 garotos que foram vítimas do terrível evento. Era o pessoal da Bandnews. Foi a mais pungente homenagem que se poderia fazer aos meninos.
O futuro que lhes foi roubado retornava, imaginariamente, na transmissão de possíveis partidas de futebol. Tudo era ambientado em um Maracanã lotado por uma torcida enlouquecedora. Nelson Rodrigues dizia que o Flamengo é uma camisa que joga sozinha.
Os lances materializavam os sonhos destroçados dos garotos. A narração dos gols se impregnou de uma dimensão trágica. Só aguentamos alguns segundos, depois desligamos o rádio, pois não conseguíamos controlar a comoção.
Mas, temos de ir além do choro. A dor que nos atinge ainda é maior porque se trata de mais uma tragédia em série, de mais uma tragédia anunciada. O Brasil está doente da alma. Sustenta-se em cima de valores carcomidos, não aprende nenhuma lição com os erros, não revê os equívocos, por mais desastrosos que sejam.
Em princípio, o fato explode como um acidente. No entanto, no decorrer das primeiras investigações jornalísticas, logo tropeçamos com os erros crassos, a irresponsabilidade crônica, a ausência de respeito pela vida e a falta de cuidado pelo outro.
O alojamento dos meninos não tinha alvará de funcionamento, só poderia funcionar no local um estacionamento, a diretoria do Flamengo foi notificada e ignorou 30 multas. Não é um caso isolado. Segundo a Prefeitura do Rio de Janeiro, os centros de treinamento do Vasco e do Fluminense também funcionam sem alvarás.
Não se trata de uma tragédia só do futebol; essa tragédia não pertence apenas à nação rubronegra, mas, também, à nação brasileira. Pelo investigado até agora, o problema não é de falta de investimento (foram gastos mais de 23 milhões no Ninho do Urubu), mas de falta de cuidado. O local do alojamento dos meninos era um “puxadinho”, uma gambiarra. A 10 metros estava a sede dos profissionais. Os meninos seriam transferidos dentro de duas semanas.
De maneira semelhante a Mariana e Brumadinho, é uma tragédia da impunidade, da omissão, do desleixo e do descaso com a vida. Poderia plenamente ser evitada. Depois da catástrofe surgem os tragicômicos “gabinetes de crise”. Não aprender com os erros é algo enlouquecedor. Quem vai nos proteger? Quanto vale uma vida?