Fernanda polifônica

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Finalmente, assisti Ainda estou aqui. As imagens do filme ainda ressoam mixadas à canção de Erasmo Carlos e Roberto Carlos: “Estou envergonhado/Com as coisas que eu vi/Mas não vou ficar calado/No conforto, acomodado/Como tantos por aí”. É uma história dilacerante sobre democracia e regime de exceção, sem que ambos sejam nomeados explicitamente. A mestria de Walter Salles está em confrontar a vulnerabilidade de uma típica família brasileira de classe média com a violência, a brutalidade e o arbítrio de uma ditadura.

E o espantoso é que ele mostra tudo isso sem derrapar em nenhum momento no panfletarismo. Você não precisa de atestado ideológico para entender e para se sensibilizar com o drama que se narra. A ausência da política é a dimensão política do filme. Ninguém sabe direito porque Rubens Paiva foi preso. O que só aumenta a voltagem dramática. E, neste sentido, é um filme sobre a alienação e a desinformação a que induz um regime de exceção.

Um crítico francês do Le Monde espicaçou a interpretação de Fernanda Torres em Ainda estou aqui. Permitam-me discrepar. Não me parece que o referido crítico francês viu o mesmo filme que eu e muitos outros viram. Em primeiro lugar, na sequência da narrativa, depois que Rubem Paiva é preso, qual o tom o ilustre analista gostaria que Fernanda adotasse para interpretar a situação dramática em que se viu envolvida, com o marido desaparecido, sem notícias, pressionada pelo desafio de cuidar de cinco filhos?

O de euforia de quem dança em um show de axé-music? Mas, mesmo se consideramos a linha trágica da interpretação de Fernanda, percebermos que ela é cheia de nuances, matizes e sutilezas. Por exemplo, na cena em que visita uma sorveteria, se depara com várias mesas ocupadas por famílias com a presença dos pais. Ela não diz nada, só contempla em silêncio, mas a cena tem um enorme peso dramático.

Apesar de ser baseado em um livro, Ainda estou aqui é um filme nada literário. Tudo ganha uma versão cinematizada. A narrativa é sustentada pela tensão de Fernanda Torres na pele da mãe, dividida entre o desespero e a necessidade de manter o ânimo e de proteger os cinco filhos desamparados pela ausência do pai. A mestria com que Fernanda expressa a situação trágica em suas gradações, tonalidades e sutilezas, de maneira precisa, sem derramamentos inúteis, caracteriza, na verdade, não um tom monocórdio, mas, sim, uma interpretação polifônica. Diz tudo com olhares, esgares, expressões faciais, contrações e retesamentos do corpo.

A arte consegue tocar aonde nenhum discurso político pode chegar. É o filme certo para a hora certa. Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro e a fita ainda concorre ao Oscar. Eunice Paiva emerge na condição de mulher-coragem de uma força trágica extraordinária. Independentemente da disputa na selva selvagem da indústria cinematográfica, o filme cumpriu uma sina vitoriosa, interferiu, inclusive, no destino da família Paiva. É uma reparação simbólica possível para um acontecimento terrível da nossa história. A família Paiva poderia ser qualquer família. É uma tragédia política tocada pela luz do humanismo.

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