Farmacêutico fracassado

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

 

A escolha da profissão é uma das coisas mais misteriosas que existe. Mas a vida costuma nos empurrar para algo que podemos fazer com algum talento. É muito importante, pois o trabalho produz felicidade ou infelicidade. Estar no lugar certo ou errado faz toda a diferença.

Cheguei ao jornalismo graças a uma série de lances do acaso. Um amigo me pediu para ir com ele até uma faculdade particular, pois faria inscrição para o vestibular. Quando chegamos lá, ele sugeriu que eu também me inscrevesse. Por eliminação, escolhi o jornalismo. Não estudei nada e fiquei em terceiro lugar na classificação do vestibular. O colega perguntou: “Só havia dois concorrendo?”

No poema intitulado Final de história, um poeta brasileiro evocou a relação com o curso de farmácia: “Meu Deus, formei-me deveras?/Sou eu, de beca alugada,/uma beca só de frente,/para uso fotográfico,/sou eu, ao lado de mestres/Ladeira, Laje, Roberto,/e do ínclito diretor/doutor Washington Pires?/Eu e meus nove colegas/mais essas três coleguinhas,é tudo verdade? Vou/manipular as poções/que cortam a dor do próximo/e salvam os brasileiros/do canguari e do gálico?”

E mais adiante, o próprio poeta responde à sua pergunta e delega ao companheiro de turma Amorim a missão de ser farmacêutico: “Companheiro, tu me salvas/ do embrulho em que me meti?/Dou-te plenários poderes:/em tuas farmácias Luz/ou Santa Cecília ou Cláudia,/faze tudo que eu devia/fazer e que não farei/por sabida incompetência:/purgas, cápsulas, xaropes,/linimentos e pomadas,/aplica, meu caro, aplica

trezentas mil injeções,”

O poeta conclama o colega a cumprir tarefas que ultrapassam a obrigação do farmacêutico: ” atende, ajuda, consola/sê enfermeiro, sê médico,/sê padre na hora trevosa/da morte do pobre (a roça/exige de ti bem mais/que o nosso curso te ensina)./Vai, Amorim, sê por mim/o que jurei e não cumpro./Fico apenas na moldura/do quadro de formatura.”

Embora nunca tenha exercido a profissão, o poeta sempre falou sobre a experiência e sempre exaltou o ofício de farmacêutico: “Para o farmacêutico, amar não é apenas o verbo transitivo direto que se aprende a conjugar, nas escolas. Amar é ação. A ação de servir, a qualquer hora de qualquer dia e em qualquer lugar. É cuidar, é promover a saúde, é salvar vidas”.

Nesta semana, uma boa alma me repassou um vídeo com trecho de uma entrevista concedida por Frei Betto, na qual ele conta um episódio muito interessante. O avô de Frei Betto tinha uma farmácia em Belo Horizonte e foi procurado por um estudante recém-formado em Farmácia, que lhe pediu um estágio.O avô acolheu ao rapaz. No entanto, a farmácia era de manipulação e o rapaz não sabia fazer devidamente as misturas. Só ficava o tempo todo em um canto lendo.

O avo de Frei Betto chamou o rapaz, ponderou que era inapto para a função e teria de demiti-lo. Graças a demissão do rapaz, a literatura brasileira foi salva. Ele se chamava Carlos Drummond de Andrade.

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