Severino Francisco
Renato Matos é um duende baiano que botou vatapá no caldeirão modernista de Brasília. Inventou um reggae com sotaque candango e foi um dos primeiros a fazer crônicas musicais a partir da vivência na cidade espacial, com canções de balanço e letras pós-tropicalistas.
Reagge candango, meio samba, meio baião, meio blues, meio bossa nova. Ele reinou nos Concertos Cabeças, realizados nos gramados da SQS 311 e no Parque da Cidade. Quando tinha 17 anos, dois tios que trabalhavam na construção de Brasília mandavam pôsteres da cidade. Renato tinha visto uma foto da Escola Parque da 508 Sul, ficou fascinado e colocou na cabeça que queria estudar naquela escola com piscina.
Ator e artista plástico, logo que chegou, impressionado com as distâncias de Brasília e compôs a clássica canção Um telefone é muito pouco. Muitos pensavam que se tratava de uma música romântica, mas, para Renato, o problema era geográfico e de mobilidade urbana.
Visitava o Gama para namorar e tinha dificuldade de ir à cidade-satélite. No entanto, a volta era tranquila, pois sempre conseguia carona com deputados e doutores do Plano Piloto: “Um telefone é muito pouco/Pra quem ama como louco/E mora no Plano Piloto/Se a menina que o cara ama/Tá pra lá do Gama, mata de desgosto/E ele fica dentro do pijama/Em cima da cama/comendo biscoito”.
A canção expressa a introspecção a que a espacialidade e o silêncio de Brasília induzem. Ele veio da Bahia para morar com a família de Zilá Reis, mãe do ator Guilherme Reis. Todos saíam para trabalhar e Renato ficava em casa contemplando a cidade pela janela: “E a televisão com seus programas/Que não têm mais chama pra quem tá afoito/E ele foge para Asa Norte/Tropeçando em ratos/Que saem do esgoto”.
Uma outra música que se tornou trilha sonora da geração Cabeças é Guará 2. Renato a considera a primeira canção sertaneja de Brasília, embora venha embalada no balanço do reggae. Mas o tom é o lamentoso de dor de cotovelo, provocado novamente pela dificuldade de deslocamento em Brasília, que afeta os relacionamentos amorosos: “A menina que eu amo/A menina que eu amei/Me deixou para depois/Porque eu moro no Guará 1/E ela mora no Guará 2/Ela de lá e eu de cá/Jornal não vou aguentar/Ai que frio/Palavras cruzadas não dá”.
Mais recentemente, Renato fez uma bela parceria com o poeta TT Catalão, Solidão celular. Pode ser considerada quase que uma sequência de Um telefone é muito pouco, mas, agora, em outras circunstâncias.
O aparelho que, em tese, promoveria a conexão total é criticado como reduto da solidão e da desumanização. Algumas pessoas costumam ou costumavam (antes da pandemia) ir aos bares e ficar defronte às outras com as maquininhas de digitar, sem mirar o olho do interlocutor.
No filme Sirig Dum Brasília, de André Luis de Oliveira, Renato erra pelo silêncio espacial de Brasília com a intimidade de quem passeia pela casa, com a voz ecoando: “Ah, ah, esta solidão celular/Ter todos ao alcance e não ter com quem falar/E não ter com quem tocar no coração/Ah, ah, esta solidão celular”.
Entretanto, com a pandemia, nós estamos mais para “um telefone é muito pouco/pra quem ama como louco/e mora no Plano Piloto”. Os, algumas vezes, tão vilipendiados celulares têm sido preciosos. São as imagens, os vídeos, as mensagens, os beijos e os abraços virtuais que estão nos salvando. Ah, ah, esta solidão celular… Vamos celebrar os 70 anos do duende baiano!