Dói só quando eu rio

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

“Sente-se, leitura fluída/agradável/sem anteparos ou/escolhos/é para ler de uma/sentada”, escreve o poeta Francisco Alvim em um dos poemas de O metro nenhum (Ed. Cia das Letras). O poema não está no início, mas bem que poderia funcionar, a um só tempo, como roteiro e senha, mas irônicos. Eles propõem ao leitor um jogo com os sentidos. É preciso ler além do que está escrito.

Vejam só como é misteriosa a poesia. Ganhei o livro na época do lançamento, em 2011, não me tocou ou, melhor, não me toquei. No entanto, em 2019, ele caiu-me nas mãos, pedindo ou ordenando que eu o lesse. O próprio Chico disse que é possível aplicar plenamente à poesia aquela definição dada por Magalhães Pinto à política: é uma nuvem, cada vez que você olha, ela está diferente e sopra em outra direção.

Todavia, voltemos ao livrinho magro, de poemas quase sempre curtos, mas contundentes. Chico parece um Dalton Trevisan do Lago Norte a destilar ironia, farsa e dramas de R$ 1,99 em sua antilira, em sua antipoesia: “Mas se todos fazem”, escreve no poema Argumento. Mirou em um alvo de circunstância, porém acertou em tantas atrocidades que se fazem em nome do princípio ético partilhado por muitos em outros tempos.

Algumas vezes, os poemas de Chico são muito engraçados, chegam a produzir um efeito hilariante, como é o caso do intitulado História de neto:”São muito chatas/mas esta vale a pena/a babá/mocinha de treze catorze anos/resistiu o quanto pôde/mas acabou que confessou tudo/só que tudo era outra coisa/muito pouco/quase nada/cinco reais um lençol um quilo de arroz/o Cartier negou”.

Corte godardiano da cena para o neto: “Ele três aninhos só ouvindo/e/de repente:/(nunca vi criança tão inteligente)/mas que perigo/podiam ter roubado a minha chupeta”. Chico inventou o falso poema-piada, sua poesia é carregada de segundas e terceiras intenções. O não dito, o apenas insinuado, é sempre o essencial. É o que se lê em Um churrasco: “Não foi desmarcado/ela estava muito velhinha/muito doentinha”.

Os poemas não se esgotam na piada diluidora. Doem só quando você ri. Contrabandeiam inquietação a cada blague. Em Terço, ele diz: “Foi dela/era tida como uma santa/com quem fica?” Chico é mineiro, exercita uma consciência moral atormentada, crítica e implacável com as ridicularias humanas.

Mas também exerce a veia lírica. Em Sonoro, possivelmente inspirado na luz brasiliana, ele saúda a alvorada: “Voz que dança/na luz que brilha nesta linha/branca/do horizonte/Luz, luz/que cresce/no espaço que se abre/da aurora”.

A antilira radical, feita de pequenos nadas, ou de “cacos de ar”, pode levar muitos a questionarem se seus versos são, de fato, poesia. Ele arrisca uma resposta no poema Metro, que discute a pendenga sobre quem seria o maior poeta brasileiro. Drummond saiu fora, negando que alguém o tenha medido com fita métrica para saber.

Chico emenda: “Estava certo/pois a poesia/quando ocorre/tem mesmo a perfeição do metro/nem mais/nem menos/só que de metro nenhum/um metro ninguém/um metro de nadas”. A mensuração da poesia não é científica nem matemática. Os poemas de Chico transcendem a piada que se apaga; eles permanecem em nossa cabeça, provocando inquietação depois da leitura: “Mas se todos fazem”.

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