Severino Francisco
Estava assistindo a um excelente documentário que um diretor francês realizou sobre Maria Bethânia quando a minha filha chegou apavorada e me pediu para exterminar um inseto enorme que pousou na sala.
Moro em um condomínio horizontal numa zona fronteiriça a uma mata cerrada, impondo uma convivência cotidiana com bichos silvestres. Dirigi-me até a sala para proceder à investigação de praxe e, realmente, deparei-me com um inseto estranho, de carapaça áspera, antenas salientes, parecendo um pedaço de árvore retorcida do Cerrado ou um bicho remanescente da era pré-histórica dos dinossauros.
Repreendi a minha filha pelo alarde desproporcional à ameaça do estranho, mas inofensivo inseto. Abri a porta e comecei a expulsar o intruso para que ele deslizasse na direção do quintal. A operação estava sendo bem-sucedida, mas, depois de avançar alguns metros, após a terceira ou quarta estocada com o pé, ele desapareceu, misteriosamente.
Concentrei-me examinando detidamente o piso de ardósia em busca de algum sinal ou pista do bicho, e nada. Parecia que, em um átimo, ele havia perfurado a lajota e se enterrado no subsolo ou então teria simplesmente se escondido embaixo da poltrona.
Decidi, então, levantar os móveis para verificar, providência que se revelou inútil, não havia nada embaixo. Em face do sumiço do tal inseto pré-histórico, resolvi voltar rapidamente ao quarto e retomar o documentário sobre Maria Bethânia, que estava ótimo.
Ao assistir às cenas do filme, é possível compreender por que aquela família tem um ouvido musical que não é normal. Caetano e Bethânia nasceram em uma casa embalada por canções, ritmos, rodas de música. Rapidamente, improvisaram uma batucada em que toda a família e a vizinhança participavam, batendo palmas e marcando o ritmo com sons extraídos de pratos e panelas.
Ao evocar a Tropicália, o movimento que criou com Gilberto Gil, Tom Zé e outros, Caetano comentou: “Nós queríamos fazer uma canção que fosse permeável à brutalidade do mundo”. Eu estava completamente imerso no fluxo do documentário quando, de repente, senti uma coceira no pescoço. Instintivamente, passei a mão para verificar o que era quando a minha filha soltou um grito e explodiu em uma gargalhada. Vocês adivinharam, era ele mesmo, o inseto pré-histórico.
É bem provável que voara e se aninhara em meu pescoço, quando dei um chute para jogá-lo fora de casa. A minha filha vislumbrou no incidente um sinal divino em punição a meu desdém do medo de insetos pré-históricos do Cerrado.
Do episódio, fiz a seguinte reflexão. É, verdadeiramente, uma pena que só eu tenha sido atingido pelo castigo do Deus on-line. Se os corretivos divinos viessem, não a cavalo, mas on-line, com certeza, o mundo seria menos torto, desigual e escuso, com menos desmandos, falcatruas, mentiras, orçamentos secretos, negacionismos, omissões, irresponsabilidades, lambanças ou assaltos de Suas Excelências ao erário.