Severino Francisco
Dariel Valença Lins, um dos mais talentosos ilustradores da história das artes gráficas no Brasil, está sendo homenageado no Museu de Arte de Brasília com uma mostra retrospectiva que reúne mais de 200 trabalhos. A exposição celebra os 100 anos de Darel, que nos deixou em 2017.
Pois bem, o artista pernambucano fez duas colaborações para a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, instituição brasilienses comandada por José Salles Neto: as ilustrações para a novela A polaquinha, de Dalton Trevisan, e a peça O beijo no asfalto, de Nelson Rodrigues. Ambas as séries de desenhos são preciosas, mas, além delas, Darel registrou um valioso depoimento na introdução de O beijo no asfalto, no qual conta a história de como conheceu e como desenvolveu parceria pernambucana com o nosso profeta do óbvio na cozinha dos jornais cariocas.
O contato com Nelson ocorreu “de maneira indireta” na década de 1940. Darel tinha 22 anos e conseguiu o primeiro emprego em O Jornal. A tarefa dele era ilustrar, todos os dias, uma coluna, intitulada Um caso por dia, sobre uma história ocorrida na periferia do Rio de Janeiro, escrita por algum repórter do jornal. Mas eis o desafio proposto pelos editores: Darel teria de imprimir uma interpretação cômica, descartando o lado dramático do episódio.
Acontece que Darel tinha propensão para o dramático e, não raras vezes, era chamado para levar uma bronca do chefe de redação e adverti-lo do foco a ser adotado. Em certa noite, Darel recebeu para ilustrar a narrativa do caso de alguns rapazes que estavam em uma calçada, tomando cerveja em Cascadura. De repente, surge um Ford Bigode, resvala em um paralelepípedo, que atinge a cabeça de um dos boêmios, provocando a sua morte.
Darel não teve dúvida em carregar no traço trágico. No dia seguinte, foi chamado pelo redator chefe e avisado: “Não vamos necessitar mais dos seus serviços”. Sim, ele estava demitido. Muito tempo depois, Darel foi trabalhar como diagramador em Última Hora, jornal de Samuel Wainer, com um time de cobras no elenco de articulistas: João Cabral de Melo Neto, Vinicius de Moraes, Antonio Houaiss, Hélio Pelegrino, entre outros.
No entanto, eis que Samuel Wainer chamou Darel para ilustrar a coluna A vida como ela é, de Nelson Rodrigues. Logo, percebeu que A vida como ela é, de fato, tinha forte conexão com Um caso por dia. Nelson batia com dois dedos em uma máquina Remington e não aliviava no aspecto dramático:”Eu diria até salgando mais o que era desagradável na história que eu deveria ilustrar”, ressalta Darel no texto para a Confraria dos Bibliófilos.
No entanto, para a estupefação e para a indignação de Darel, o nosso profeta do óbvio tinha opinião idêntica ao antigo editor chefe de O Jornal. Ou seja: queria que Darel ilustrasse as suas crônicas com o estilo das histórias em quadrinhos. “Eu estou escrevendo A vida como ela é para o povão, Darel, sem burilar o texto e para criar um tipo de tensão.” E complementava com uma frase fulminante: “Os sapos nasceram para viver no charco”. Travaram longas e cordiais polêmicas de amigos, sem que nenhum convencesse o outro inteiramente.
Em O beijo no asfalto, Darel teve total liberdade para imprimir seu olhar trágico. As ilustrações lembram, vagamente, as de Goeldi para a obra de Dostoiévski. No entanto, em livro, ele pôde transcender o realismo e exercitar, plenamente, uma visão simbólica e poética, que Nelson queria barrar no jornal. Darel considerou os desenhos para O beijo no asfalto os melhores que fez na carreira de ilustrador.
E de sua parte, José Salles avalia que os desenhos que Darel criou para A polaquinha foram os mais primorosos dos livros editados pela Confraria, que contou com uma constelação dos mais importantes artistas gráficos do Brasil. Vamos ver a exposição do Darel no Museu de Arte de Brasília.