Curicacas nas quadras

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Severino Francisco

Fui resolver um problema na Asa Sul, errei a quadra, tive de caminhar até o endereço certo e, no trajeto, levei um susto. Avistei quatro curicacas nos gramados, revolvendo e fuçando a terra fofa molhada pela chuva para caçar insetos e larvas, com o longo bico recurvado. Fiquei embevecido pela presença selvagem em plena área residencial da capital do país e continuei a minha caminhada rumo a meu destino.

Mas quando avancei até a próxima superquadra, eis que me deparo com mais três curicacas. Acho essa ave linda, com a plumagem cinzenta, preta, branca e avermelhada. Em minhas andanças pelo cerrado nas décadas de 1970 e 1980 só me lembro de ter me deparado com curicacas raramente. Imaginava que eram aves selvagens, ariscas e refratárias à presença humana.

Ao ler sobre o tema, fiquei sabendo que habitam os campos abertos, as beiras de matas, de caatingas, de cerrados e de grandes plantações. Costumam se abrigar em lugares próximos a lagos, campos com solos pantanosos ou alagados. São terrenos propícios para escarafunchar a terra molhada e fofa, para arrancar insetos e larvas. Também se alimenta de pequenos lagartos, de diminutos roedores, de sapos e cobras.

Isso quando permanece na terra. Ao voar, gosta de planar muito alto. Elas foram batizadas de “despertador” porque emitem um grito estridente ao amanhecer e ao alvorecer. Quis saber da razão de as curicacas terem passado a frequentar os ambientes urbanos. No entanto, o mistério não foi deslindado. Os cientistas ainda estudam os novos hábitos de alguns pássaros.

Uma das hipóteses levantadas é a de que o comportamento das aves mudou durante os dois anos de pandemia servera, quando as cidades ficaram despovoadas. Talvez isso tenha estimulado a migração dos pássaros para os espaços urbanos. No entanto, o meu consultor e observador de aves Tancredo Maia me disse que, mesmo antes da crise sanitária, as curicacas estavam presentes no Plano Piloto. De qualquer maneira, elas se beneficiaram do projeto de cidade-parque concebido por Lucio Costa.

Clarice Lispector passou pela cidade na década de 1970 e escreveu crônicas memoráveis em que ironizava as árvores mirradinhas do Plano Piloto, parecidas com as de plástico. Pois bem, se ela visitasse Brasília agora teria uma outra visão da cidade. Os arbustos floresceram, vicejaram e cresceram. Atraíram uma infinidade de pássaros e ofereceram fartas opções de alimentos.

O sítio é tão bom que recebe a visita do bacurau americano, que se refugia no planalto quando o frio se torna mais severo no inverno dos Estados Unidos, depois de uma viagem de mais de 10 mil quilômetros.

Esperemos as pesquisas dos cientistas, mas, em meio a tantos desconcertos e desgovernos, é um pequeno privilégio a presença das curicacas no centro da capital do país, que é uma cidade-parque, cidade-pomar, cidade-quintal.

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