Severino Francisco
Ao assistir a um vídeo caseiro, gravado por meu irmão, fiz uma descoberta surpreendente: o meu pai, Severino Francisco, foi, muito provavelmente, senão o primeiro, um dos primeiros cronistas de Brasília. E por que faço tal afirmação? Por que antes de ser inaugurado o Correio Braziliense, em 21 de abril de 1960, meu pai, um pernambucano quixotesco, nascido em Gravatá, já fazia croniquinhas rimadas.
Veio para o Planalto Central com o dinheiro que ganhava com almanaques em versos, que escrevia, publicava e vendia. Cresceu no sertão bravio e primitivo. Era um nordestino de imaginação delirante, parecia saído diretamente de dentro de um folheto de cordel. Poeta popular com formação autodidata, conseguiu se formar em teologia. Da leitura de revistas e livros de ciência, assimilou uma consciência ecológica aguda.
Em 1925, era um menino e assistiu, com um misto de pavor e fascínio, a chegada das chamadas volantes, os caminhões cheios de soldados para perseguir o bando do cangaceiro Lampião: “Eu era bem pequenino/quando vi um caminhão/apinhado de soldados/com os seus fuzis nas mãos/para enfrentar mato/espinho, cobra e carrapato/em busca de Lampião”.
Mais eis que a narrativa embica, abruptamente, para Brasília: “O soldado João Feitosa/que perseguiu Lampião/está vivo e mora em Brasília/é filho do meu sertão/me contou de viva voz/esta triste narração/lutou em Pau de Colher/é um herói sem galão/viu o sangue correr/de irmão para irmão/é um dos sobreviventes/daqueles cabras valentes/que andavam pelo sertão.”
Nos tempos de estudante ginasial, nos anos 1950, já revelava impressionante consciência ecológica: “Primeiro uma machadada/a árvore bela e copada/continua resistindo/depois começa rangindo/como cana na esteira/e na hora derradeira/ainda se ouve um estalo/ a morte, a queda e o abalo/e adeus mata brasileira.”
Registrava a devastação das matas brasileiras em versos épicos e pungentes, que parecem escritos no século 21: “SOS para quem?/Onde está a consciência?/Onde estão os governantes/O que é feito da presidência?/A fauna, a flora e o clima/ninguém olha com clemência/para a grande devastação/é o maior atentado/do homem sem coração/quem comete tal delito/terá um nome maldito/pela próxima geração.”
Meu pai viu Brasília nascer e registrou a aventura nos versos, em um tom também épico: “Eis a nova capital/riscada sob medida/veremos a sua plenitude/depois dela ser construída/lago por todos os lados/beleza e vastidão/espaço e arejamento/tem léguas de pavimento/ainda cheirando a sertão”.
No início da cidade, a moradia era um drama para as classes populares, que inventavam nomes bizarros para as suas ocupações. Meu pai veste a máscara dos candangos em versos jocosos e surreais: “Morei na Curva da Onça/e temendo ser assaltado/levei a minha mudança/para o Quintal do Delegado/De lá fui despejado/mudei-me para Sapolândia/hoje moro na Ceilândia/na Vila do Cachorro Sentado”.
Certo dia, meu pai se encontrou com Juscelino Kubistchek em Taguatinga e fez a seguinte saudação de improviso: “Quero lhe cumprimentar/Brasília é um monumento/Trabalho de nossa gente/Bravura de bandeirante/cabeça de presidente/agora posso afirmar/que vi a redenção/meus filhos tomaram posse/da terra da promissão/foi a mão da providência/que regeu vossa excelência/para governar nossa nação.”
Quando Luiz Gonzaga morreu, meu pai o homenageou, numa paródia da letra de A morte do vaqueiro, mas com a mesma melodia pungente: “O Nordeste brasileiro/suspirou de emoção/quando vagou a notícia/morreu o rei do baião/nunca mais ouvirão/teu cantar meu irmão”.
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