Severino Francisco
Tudo fica mais leve, alegre e delicado com um chorinho. E nenhum grande instrumentista resiste ao convite de Reco do Bandolim para tocar no Clube do Choro, situado no Eixo Monumental. É um dos endereços certeiros da boa música em Brasília e no Brasil. Assisti a shows memoráveis naquele espaço. Sensacional Armandinho tocando o clássico Bolero de Ravel, em forma de chorinho. Com seu ritmo buliçoso, assanhado e manhoso, o choro tem algo de festa de passarinho, drible de Garrincha ou de Vinicius Jr., curva caprichosa de um desenho de Niemeyer na paisagem, arrepio elétrico. Somos um pais de cangaceiros, mas também capazes de delicadezas surpreendentes.
O choro pegou forte na cidade, plantado por mestres da categoria de Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Bide da Flauta, Avena de Castro e Odette Ernet Dias. Mas, atualmente, é Reco quem insufla alma no choro de Brasília, que, tudo, indica, terá vida longa.
Antes do Clube do Choro e da Escola de Choro Raphael Rabello, o gênero era considerado “coisa de velho”. Todavia, agora, vejam o que aconteceu: há uma legião de crianças e adolescentes que fazem diabruras com um cavaquinho nas mãos. É chorinho com pegada de rock. O exemplo mais cabal é de Hamilton de Holanda, que, praticamente, tomou chorinho na mamadeira do clube candango e se tornou um dos brilhantes instrumentistas do Brasil.
Hermeto Pachoal sentenciou: “O futuro da música instrumental brasileira está nas mãos de Hamilton de Holanda”. E, de fato, ele se tornou o futuro e o presente da música instrumental brasileira.
O Clube do Choro revive, simbolicamente, o ambiente de intimidade e descontração dos antigos bares, onde o gênero floresceu no Rio de Janeiro. Não é de se estranhar que, em noites inspiradas, tenhamos a impressão de que Jacob do Bandolim, Pixinguinha ou Waldir de Azevedo baixaram na pele dos músicos.
“Coisa de louco”, costumava comentar, Reco do Bandolim, o coordenador do Clube do Choro, sempre extasiado com os virtuosismos e malabarismos dos grandes instrumentistas. Sem a sua capacidade de articulação, a sua liderança e o seu profissionalismo, o choro não sobreviveria em Brasília. São Paulo inaugurou um Clube do Choro diretamente inspirado na matriz brasiliense.
Certa vez, Reco convidou o jornalista e crítico carioca Sérgio Cabral (pai) para participar de um show comentado do grupo Choro Livre. Era simples: o grupo tocava clássicos do gênero e, sentado em frente a uma mesa, Sérgio, mais para pesquisador boêmio do que para scholar de gabinete, contava deliciosas histórias do chorinho. Pois bem, Reco anuncia a presença de Sérgio Cabral dentro de instantes e o Choro Livre executa a primeira composição: “Estamos aguardando Sérgio Cabral. Enquanto isso, vamos a mais uma música”. E nada do Sérgio Cabral aparecer. O clima começou a ficar tenso depois da quarta música sem o crítico.
Mas eis que, depois de uns 20 minutos, Sérgio Cabral irrompe ao palco do Clube do Choro, soltando fogo pelas ventas: “Reco, você se esqueceu de mandar alguém me pegar no hotel{”. E o Reco todo desconcertado: “Impossível te esquecer Sérgio, você é inesquecível!”. Carioca desembaraçado, ex-integrante da turma do Pasquim, Sérgio transcendeu a situação em um átimo com admirável senso de humor: “Esquece Reco, me dê uma garrafa de uísque e vamos começar a nossa conversa”.
Mesmo assim, Reco não se conformava com o deslize: “Depois dessa, até eu, que não bebo, quero também uma garrafa de uísque. Por favor, garçom”. No entanto, Sérgio Cabral evocou histórias saborosas e tudo terminou em eletrizante choro, da melhor categoria: “Coisa de louco, coisa de louco”, diria Reco.
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