Climério e Vladimir

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Severino Francisco

A amizade cultural entre Climério e Vladimir Carvalho suscitou uma pequena obra-prima: a canção Conterrâneos, com letra de Cli e música de Clodo e Clésio. Quando era aluno da UnB, Climério topou com Vladimir, nos corredores do Minhocão, quando o cineasta paraibano filmava o documentário Vestibular 70, premiado no festival de curtas promovido pelo Jornal do Brasil.

Começaram a conversar, eram nordestinos, tinham afinidades telúricas e logo ficaram amigos. Os laços afetivos se estreitaram quando Climério se matriculou no curso de cinema ministrado por Vladimir, quando teve a oportunidade de conhecer o cinema russo de Vertov, Eisenstein e Pudovkin, mas também a tradição do documentário brasileiro. Não por acaso, a poesia de Climério é permeada por cortes e montagens cinematográficas.

E, nesta conexão com o cinema, merece destaque a bela canção Conterrâneos, do álbum Clodo, Climério e Clésio, mas também gravada por Dominguinhos e Guadalupe. Conterrâneos é uma canção diretamente inspirada no filme Conterrâneos velhos de guerra, de Vladimir Carvalho, que documenta o drama dos nordestinos que ergueram Brasília. Climério escreveu os versos com a intenção de que fossem musicados.

Ficou profundamente tocado com a realidade humana projetada pelo documentário. Queria fazer uma homenagem ao filme, a Vladimir e ao Nordeste, mas sem elogiar o filme ou o diretor de maneira direta. Desejava falar da luta dos que constroem os edifícios e não tem onde morar. É o que aconteceu com os candangos expulsos das ocupações próximas ao Núcleo Bandeirante e transferidos para a Ceilândia, cujo nome deriva da sigla CEI – Comissão de Erradicação das Invasões.

A letra nasceu do contato com o filme, mas também das conversas de Climério com Vladimir, nos tempos em que ambos eram professores da Faculdade de Comunicação da UnB. A poesia de Climério se fundiu maravilhosamente com a melodia de Clodo e Clésio para construir uma das mais belas e pungentes canções sobre a migração nordestina.

Não é uma poesia água com açúcar. Logo no primeiro verso, Climério avisa, nordestinamente, sobre a situação da partida: “O amor também tem aspereza/Faz chorar/Toda brisa que me beija/Vem de lá/Quando se parte de um lugar/Sem querer/Parte-se um pouco de tudo/Fica-se um pouco por lá”. Em seguida, Climério  expõe o drama popular nordestino de construir casas e cidades e não ter onde morar, com versos concisos e contundentes: “Tão nordestino é o desatino/De sonhar/De construir casa e destino/Sem morar/Tão carregado de esperança/Ao partir/Pensando que a hora da volta/Já está pra chegar”.

E, quase como se percorresse um ciclo, embora os versos sejam estruturados em uma montagem cinematográfica não linear, Climério faz a epifania da saudade, do nordestino dividido entre a condição de migrante e os apelos da terra de origem: “Saudade chega no cheiro da moça chegada recente/Saudade chega na fala do moço chegado de lá/Saudade chega no pingo da chuva que cai de repente/Saudade chega no claro do dia de qualquer lugar”.

Na época, Vladimir Carvalho escreveu: “Os meus ‘irmãos” Ferreira dizem na música muito do que eu gostaria de dizer no cinema e nem sempre consigo. Ouvindo-os faço com eles uma fabulosa viagem de volta às minhas próprias raízes, nas asas de um doce sentimento”. E, realmente, Conterrâneos é uma das mais belas canções sobre a migração nordestina. Não é pouca coisa, pois inscreve Clodo, Climério e Clésio em uma tradição que tem Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira, Dominguinhos e João do Vale.

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