Severino Francisco
Ao ver o anúncio de mais um Festival de Brasília do Cinema Brasileiro me lembrei de uma história. Porque me parece que o que confere alma a um território urbano é a cultura. Estávamos no fim do regime militar na virada final dos anos 1970, sob os ventos da redemocratização do país. A notícia de que o Cine Cultura, nascedouro do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, criado a partir das memoráveis palestras de Paulo Emílio Sales Gomes, seria vendido pela Terracap, provocou a indignação geral nos arraiais da cultura.
Os (então) jovens assumiram a linha de frente e resolveram desencadear um movimento, sob as bençãos de Vladimir Carvalho e Athos Bulcão. Participaram artistas plásticos, cineastas, poetas, músicos e jornalistas. Fui ao Rio de Janeiro com a missão de registrar os depoimentos de dois personagens ilustres em apoio ao movimento: Ferreira Gullar e Oscar Niemeyer. As entrevistas tinha sido agendadas por telefone. Gullar foi o primeiro diretor da Fundação Cultural do DF e falou torrencialmente sobre a experiência.
Mas, quando cheguei ao Rio, Niemeyer desconversou, temeroso de sair algo truncado e sofrer represália do regime militar, em derrocada, no entanto, ainda em pleno exercício de arbitrariedades.
Fiquei apreensivo de que ele me despachasse com um daqueles célebres palavrões que até O Pasquim publicava com os sinais de cobras, lagartos e relâmpagos.
Todavia, argumentei que não poderia retornar sem a declaração, pois tratava-se de um movimento de jovens em defesa da cidade construída por ele. Nós nos mobilizamos para resistir à destruição de um dos espaços mais importantes para a história da cultura em Brasília: “Se eu não levar o seu depoimento eu nem consigo descer do avião em Brasília”, eu disse.
Niemeyer sorriu, ficou sensibilizado e propôs uma solução alternativa: uma declaração curta, escrita de de próprio punho. “Fica bom assim?”, perguntou Niemeyer. “Está perfeito!”, respondi à queima-roupa. Vibrei com a proposta. Voltaria com uma carga preciosa na bagagem. Ainda pedi a ele um desenho para ilustrar a página: “Você é insistente, mas é simpático e persuasivo”, comentou Niemeyer, e atendeu à solicitação.
Voltei à Brasília feliz. Publicamos a entrevista de Gullar e o depoimento de Niemeyer com o desenho. Tudo culminou com um grande show em uma das pracinhas das 700, que reuniu muita gente, inclusive agentes do SNI infiltrados. Mesmo sob o risco da omissão de algum nome, lembro de que participaram Renato Vasconcelos, Renato Matos, Beth Ernest Dias, Hugo Rodas, Nicolas Behr, Maria do Rosário Caetano, Sérgio Moriconi, Marcelo Coutinho, Gioconda Caputo, Rênio Quintas, Chacal e TT Catalão, entre outros.
A Terracap, empresa imobiliária do GDF, interrompeu o processo de desativação do Cine Cultura, deu um tempo, nos enrolou e vendeu ou deu uma destinação burocrática para o prédio. Foi algo de uma burrice e de uma ignorância inomináveis. São os governantes os que deveriam zelar, em primeiro lugar, pela memória e educar a população.
Os burocratas são espertos, mas quando eles vencem, a cidade fica mais pobre de espírito. Mas, saibam que o Cine Cultura não desapareceu sem resistência e luta de uma geração de brasilienses.
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