Chico sob o olhar de Clodo

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

 

Confesso que sempre preferi Caetano Veloso a Chico Buarque. Porque, Chico me parecia, como bem disse, Nelson Rodrigues, um compositor romântico do século 19. Mas, com isso, perdi muitas das sutilezas do compositor. Algumas delas são reveladas no artigo Ironia, humor e tradição em Chico Buarque, publicado no livro Chico Buarque, sinal aberto! (Ed. 7 Letras), organizado por Sylvia Cyntrão, que celebra os 80 anos do craque da canção.

O autor é Clodo Ferreira, sim, ele mesmo, o compositor de Revelação, Cebola cortada e Cordas de aço, entre tantas canções que se tornaram clássicas na música brasileira. É um olhar de criador para criador. Mas, com a ressalva que Clodo é professor aposentado da UnB e pesquisador.

Chegou a ministrar uma disciplina chamada Música e comunicação. E mais: misturou pesquisa e criação ao montar um show sobre o compositor Sinhô, que fez carreira de cinco anos, quase à revelia de Clodo.

Mas vamos a seu olhar sobre Chico. Com acuidade, Clodo alinha Chico à tradição de Noel Rosa. Sim, sempre me pareceu que Chico é Noel redivivo, reencarnado e atualizado. De maneira semelhante ao que ocorre no filme Miramar, de Julio Bressane, quando Lamartine Babo e Oswald de Andrade se encontram, Chico poderia se deparar com Noel e dizer: “Noel, você sou eu”.

A sutileza captada por Clodo é a de que, em Chico Buarque, a tradição e a inventividade não são hostis ou incompatíveis. Ele conserva e, ao mesmo tempo, supera a tradição. Chico está em sintonia com o samba das décadas de 1930/1940, no entanto, estabeleceu uma conexão com a bossa nova, incorporou as inovações do movimento e se tornou parceiro de Tom Jobim e Vinicius de Moraes.

Todavia, o melhor do artigo de Clodo está na conexão entre Chico e Noel Rosa, sob o prisma da ironia. Considera os versos de Noel para a canção Pela décima vez perfeitamente em sintonia com a uma poética buarqueana: “Joguei meu cigarro no chão e pisei/Sem ter mais nenhum aquele mesmo apanhei e fumei/Através da fumaça neguei minha raça chorando, a repetir/Ela é o veneno que eu escolhi para morrer sem sentir”.

Clodo discorda inteiramente de quem considera que o melhor de Chico ficou nas décadas de 1970 e 1980. E observa que a canção de Chico a partir dos anos 2000 mostra uma clara decantação da capacidade expressiva. E, para quem duvidar, ele cita a letra da canção A moça do sonho, com melodia de Edu Lobo, gravada em 2001: “Há de haver algum lugar/Um confuso casarão/Onde os sonhos serão reais/E a vida não/Por ali reinaria meu bem/Com seus risos, seus ais, sua tez/E uma cama onde à noite/Sonhasse comigo/Talvez”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*