Cacá Diegues e Brasília

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Severino Francisco

Cacá, que nos deixou nesta semana, desvelou a relação simbólica e estratégica do Cinema Novo com a Brasília utópica. Não é um depoimento isolado. Os líderes do movimento tiveram conexões fortes com a cidade. Com cinco anos de existência, Brasília se dava ao luxo de ter um curso de cinema, criado por Paulo Emílio Sales Gomes e por Nelson Pereira dos Santos.

A nascente do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi a Semana do Cinema Brasileiro, atividade de extensão do curso de cinema da UnB, em que Paulo Emílio esgrimia a erudição e o brilho nas apresentações dos filmes na defesa cerrada de um cinema nacional moderno, que apenas ensaiava os primeiros passos. O Festival de Brasília impulsionou as carreiras de Menino de engenho, de Walter Lima Jr, A falecida, de Leon Hizschman, e Opinião pública, de Arnaldo Jabor. A projeção nacional do Cinema Novo começou em Brasília.

Glauber Rocha registrou o impacto da criação de Brasília sobre o Cinema Novo. Os economistas diziam que Brasília seria o colapso econômico do Brasil. E, de fato, a desvalorização da moeda provocou uma crise de longo alcance. No entanto, para Glauber, Brasília foi uma revolução cultural do Brasil; com sua construção, o Brasil pôde se livrar do complexo de vira-lata diante do colonialismo. O despertar político e a consciência do subdesenvolvimento datam da construção de Brasília. E isso estimulou o Cinema Novo a inventar uma linguagem moderna para que o Brasil olhasse para as suas mazelas com toda a coragem.

Cacá pertencia a uma geração que entendia que o Brasil seria muito importante para a civilização humana. O Brasil entraria com um elemento de humanização, disse Cacá em entrevista a Ricardo Dahen, publicada no Correio: “O que simbolizava tudo isso, para a gente, era Brasília”.

A nova capital modernista estava em construção. Em 1959, Cacá desembarcou com o pai, o antropólogo Manuel Diegues, no Cerrado. Juscelino apontava. Aqui é o Palácio da Alvorada. Ali, é o Congresso Nacional. Com olhar visionário, vislumbrava a cidade inteira funcionando, mas não havia nada. É como se ele presidisse uma cidade-fantasma. Mas Brasília foi um símbolo, uma síntese da cultura que a geração de Cacá preconizava.

A conexão não foi apenas simbólica. Graças ao apoio de Ferreira Gullar, então diretor da Fundação Cultural do DF, no início de Brasília, na década de 1960, Cacá pôde rodar o documentário Três vezes favela, um dos marcos do Cinema Novo, que retirou as filmagens dos estúdios e foi para a rua captar a realidade brasileira com uma câmera nervosa na mão e muitas ideias na cabeça.

A transformação com que essa geração sonhava não aconteceu. Como disse Glauber: “Brasília é uma metáfora que não se realiza na história, mas preenche um sentimento de grandeza”. É importante evocar a Brasília utópica no momento em que ela se tornou uma cidade distópica. O Cinema Novo deixou um legado: o cinema brasileiro, que, em alguns momentos, agoniza, mas não morre.

Todavia, no momento, ganhou destaque mundial com a presença de Ainda estou aqui nos festivais e é, a um só tempo, um filme de arte, um filme político e um filme de mercado. É a prova mais cabal de que, apesar de todos os atropelos da história, esse legado da geração de Cacá Diegues permanece vivo. É muito bom quando o Brasil é Brasil.

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