Severino Francisco
Vladimir não nasceu em Brasília, mas, como diz o ator João Antônio, renasceu em Brasília. Sem deixar de ser paraibano, ficou ainda mais brasileiro no Planalto. Ele é épico; e a capital modernista também é. Em Brasília, reencontrou a aventura de redescobrir e refazer o Brasil, com as grandezas, mas também com as contradições e mazelas exasperantes.
Trouxe para Brasília o espírito de inquietação de uma das nascentes do Cinema Novo, pois participou como assistente de Aruanda, documentário de Linduarte Noronha, em que, pela primeira vez, a luz crua do sertão estouraria na tela sem o filtro das lentes, e de Cabra marcado para morrer, de Eduardo Coutinho, na primeira versão, marco de despojamento do cinema-verdade no Brasil. Inspirado nas experimentações de Aruanda, Glauber faria a estética da fome desembocar em Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Paulo Emílio Sales Gomes e Nelson Pereira dos Santos plantaram a semente do cinema na UnB dos tempos inaugurais da virada dos anos 1960. Mas quem conseguiu, efetivamente, viabilizar o projeto foi Vladimir, na década de 1970, com o espírito de Dom Quixote paraibano, idealista, mas pragmático, sob o cerco do regime de exceção. É uma pessoa de solidariedade franciscana, pungente e absoluta.
É difícil encontrar alguém da área cultural que não tenha alguma dívida de gratidão com Vladimir. Ele humaniza, civiliza, viriliza, dignifica e eleva Brasília, com seu espírito aguerrido e inflamado. Para prevalecer nesse mundo cão, a bondade não pode ser boazinha, tem de ser brava.
Depois que se aposentou, Vladimir passa grande parte do tempo enfurnado na Cinememória, em meio a câmeras, moviolas, documentos e a sua produção de artista plástico. Em face da desmemória que grassa na cidade e no país, ele criou um museu particular, doou tudo para a Universidade de Brasília, mas a instituição não honrou o compromisso. Abrigar esse acervo seria o melhor presente que a cidade poderia dar a Vladimir e a si mesma.
Quando Vladimir fez 80 anos, a data foi comemorada com uma mostra retrospectiva no CCBB. No último dia, Vladimir conversou com o público. Na saída, fui cumprimentá-lo e logo amigos de diversas idades chegaram. Vladimir disse alguma coisa sobre o exagero das comemorações e eu refutei prontamente. Acho que as pessoas de valor precisam ser reverenciadas em vida. Citei Cartola, que sentenciou: “Quem gosta de homenagem depois de morto, é estátua”.
Vladimir riu da frase do mestre e, já que estava em ritmo de samba, emendei com uma canção de Nelson Cavaquinho, Quando eu me chamar saudade, que comecei a entoar de maneira desafinada e desajeitada: “Sei que amanhã/Quando eu morrer/Os meus amigos vão dizer/Que eu tinha bom coração/Alguns até hão de chorar/E querer me homenagear/fazendo de ouro um violão…”
Mas, neste ínteirim, em um átimo, como se tudo estivesse ensaiado, os amigos de Vladimir pegaram a deixa e começaram a cantar, agora com mais afinação, ritmando o samba com palmas nas mãos: “Mas depois que o tempo passar/Sei que ninguém vai se lembrar/Que eu fui embora
Por isso é que eu penso assim/Se alguém quiser fazer por mim/Que faça agora”.
Mirei os olhos de Vladimir e tive a impressão de que ficou vontade de chorar as tais lágrimas de esguicho de que falava Nelson Rodrigues. Ele quase não aguentou, mas segurou firme na condição de cabra macho paraibano. Vladimir comemora 89 anos hoje no Cine Brasília, com a apresentação do documentário O País de São Saruê, em versão 4K e uma conversa depois da exibição do filme. Vamos celebrar Vladimir e o privilégio de sermos contemporâneos de pessoa tão preciosa!