Braga e Brasília

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Severino Francisco

A maioria dos artistas do modernismo tinha simpatia por Brasília. Afinal, Brasília é o modernismo transformado em cidade. Mas uma das exceções foi o ilustre colega Rubem Braga, inimigo implacável da nova capital do Brasil. Não perdia uma oportunidade de destilar algum veneno insinuante, mesmo se a crônica fosse sobre outro assunto. Certa vez, lhe perguntaram se gostaria de morar em Brasília e ele respondeu que não, “nem que o doutor Israel Pinheiro lhe desse um lote com cartório”.

Mas em um dos textos de Bilhete a um candidato & e outras crônicas sobre política brasileira (Ed. Autêntica), ele formula as razões da aversão a Brasília de maneira mais clara e sem a ranhetice habitual. Gostei de ler a crônica, pois tinha a curiosidade de saber qual o olhar de Braga para a cidade, despido da implicância e do azedume.

É muito bonito o que ele diz do Lago Paranoá, embora, em seguida, ele volte a alfinetar Brasília: “O lago será uma grande coisa, miradouro de nuvens, espelho de crepúsculos, viveiro de estrelas e luares, mas quanto tempo não passará até que deixe de ser uma represa, inundação artificial para ser lago mesmo?”

A visão sobre a paisagem do planalto não merece melhor sorte: “O planalto é triste com seus arbustos sem graça, que o pintor de São Paulo aproveitou com bom gosto e arte para fazer uns arranjos que decoram o Alvorada e o hotel, arranjos interessantes, mas, no fundo, insuportavelmente tristes, uma aridez enfeitada”.

Mais adiante, Braga esclarece os motivos da falta de afinidade com o projeto, a paisagem e o horizonte aberto do descampado: “Quem nasceu entre matas e morros e tomou banho em rio de verdade, e viveu na beira do mar – sente uma secreta aflição nesse descampado sem vim onde um excesso de céu acachapa tudo: e quanto tempo levará a cidade para se livrar do esquema da prancheta e fabricar o seu próprio mistério, seu mel e seu veneno, não de funcionários, larápios, industriários, securitários?

Eu considero relevante registrar e contestar a visão de Braga porque continua a ser repetida pelo restante do país. O lago poderia ter uma estrutura que tornasse a fruição do espaço mais democrática, mas está plenamente incorporado à cidade. Braga desentendeu totalmente a beleza contorcida e áspera do cerrado. Uma beleza que está na poesia ou na antipoesia de João Cabral.

As árvores floresceram, estabeleceram estações florais e atraíram uma legião de pássaros. E o céu, que ele tanto destratou, foi incorporado como uma espécie de entidade metafísica cotidiana de Brasília.

Em 1959, quando escreveu a crônica, os forrós animavam os candangos em festas no Núcleo Bandeirante. A canção Rojão de Brasília, parceria de Jackson do Pandeiro e João do Vale, já revela o olhar de quem se deteve na cidade e interagiu com o espaço: “O planalto é tão lindo que a gente tem a impressão/que bem ali pertinho/o céu encosta no chão”.

No entanto, Braga estava certo em uma observação sobre o ideal de Brasília: “mas em volta permanecerá um Brasil misterioso e triste que ela não entenderá”.

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