Aventuras da chuva

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

A chuva limpou o ar, mobilizou os pássaros, reverdeceu as plantas e, parece, foi embora. Sumiu, mas reavivou-me a memória da construção da casa no condomínio em que moro. Vivi algumas aventuras dramáticas. Passei um período de sufoco, tive de vender o carro, voltava de ônibus, descia no ponto do comércio e caminhava 3km até a minha casa.

Certo dia, fazia a marcha, quando, de repente, o tempo fechou abruptamente e tudo se precipitou com velocidade. Em um átimo, começou a cair um temporal que transformou a estrada de barro em rio corrente.

Subi em um barranco para fugir do fluxo da água. Mas, estávamos no entardecer, a luz se apagou. Os trovões ribombavam e os raios riscavam o espaço com sinais elétricos. De repente, levei um susto, tropecei em algo enroscado e caí de boca no barro. Levantei-me, outro relâmpago faiscou e percebi que havia trombado com um rolo de arame farpado.

Mais adiante, em um trecho escarpado, o rio da estrada cruzou com a enxurrada de uma vala, a água engrossou e batia na cintura. Era fazer a travessia ou retomar todo o trajeto. Tirei a carteira, coloquei em uma bolsa, suspendi os braços e atravessei o aguaceiro, como se fosse um Indiana Jones do Cerrado.

A certa altura, eu havia tomado tanta chuva que estava com a roupa, os cabelos, os sapatos, a bolsa e a alma encharcados. Não adiantava me proteger. Tudo bem, sou impermeável. Continuava a caminhar entregue à situação, sem me preocupar com a chuva, deixando que os pingos escorressem pelo corpo inteiro.

Vinha aceso pela luta, mas, ao mesmo tempo, desalentado, humilhado e ofendido pela penúria da minha vida. Sempre passava em frente à casa do meu amigo americano Everett Lee, que já nos deixou. Ele se distinguia por três características marcantes: a defesa brava do meio ambiente, o culto da amizade e o uso dos mais cabeludos vocábulos da língua portuguesa, temperados pelo sotaque americano.

Soube por terceiros que, certa vez, ele conversava com o síndico do condomínio que, comentou, enquanto eu passava ensopado pela chuva torrencial: “Está devendo seis meses de condomínio, vou mover uma ação para receber o dinheiro”. Prontamente, Lee respondeu ao síndico: “PQP! Depois que construir, ele paga. Nenhum de nós tem a coragem de fazer o que ele faz. Esse cara é herói do condomínio. Não enche o saco, #@&*!”

E, de fato, pouco tempo depois, terminei de erguer a casa e paguei o condomínio atrasado. Como é bom a gente ter amigo, como é bom a gente ser olhado pelo que temos de melhor, como é bom a gente ser alvo de uma mirada generosa. Que velocidade de instinto, que sensibilidade, que humanidade. Valeu, Lee! PQP!!!

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