Severino Francisco
Nas últimas semanas, acordo e durmo com o som metálico, rascante e estridente das cigarras. De repente, me bateu a impressão de que era mesmo uma orquestra concreta do cerrado, ao ar livre, a palo seco, sob o sol devastador.
O canto das cigarras é puro João Cabral de Melo Neto: “Se diz a palo seco/o cante sem guitarra;/o cante sem; o cante;/o cante sem mais nada;/se diz a palo seco/a esse cante despido:/a esse cante despido:/ao cante que se canta/sob o silêncio a pino”.
As cigarras haviam sumido, mas resolveram voltar talvez em homenagem ao centenário de João Cabral, que se comemora neste 2020: “O cante a palo seco/é o cante mais só:/é cantar em um deserto/devassado pelo sol”.
As cigarras vivem muito tempo debaixo da terra e, nesta época do ano, saem para cumprir o ciclo da reprodução. Os músicos da orquestra a palo seco são os machos, que fazem uma barulheira infernal para atrair as fêmeas. O seu canto é, na verdade, um anticanto, um cante, pois o som não é emitido pela boca: é produzido pelas membranas do abdome.
O cante a palo seco das cigarras é torto, desgrenhado e crispado, parece uma tradução musical das árvores do cerrado. A música a céu aberto das cigarras é uma trilha sonora perfeita para uma cidade espacial, metafísica, moderna, mas plantada na natureza agreste. Ela produz um estranhamento, nos lança em um outro espaço, nos mantêm em estado de alerta com as suas sirenes sob o sol a pino.
Ouço muita gente reclamar das cigarras, mas, de minha parte, cada vez essa música me parece mais interessante como um traço de singularidade da capital moderna casada com os sertões bravos, como dizia Gilberto Freyre. Por isso, certa vez, resolvi conversar com o meu amigo músico Guilherme Vaz, que já nos deixou. Ele era um dos mais inventivos e premiados autores de trilhas sonoras para cinema no Brasil.
Guilherme concordava que as cigarras são músicos de vanguarda do sertão. Elas produzem a estranheza própria de toda obra de arte verdadeiramente de arte, levando a uma percepção incomum, extrassensorial, metafísica. Mas, nestes tempos de aquecimento global, o cante das cigarras é um sinal estético e de alerta sobre os desequilíbrios do meio ambiente. Está passando da hora de tomarmos alguma atitude, antes que seja tarde.
Nós, que consumimos tanto lixo sonoro comercial e industrial, afinemos os nossos ouvidos e afiemos os nossos sentidos para aprender a apreciar a beleza dessa orquestra heavy metal do cerrado. As cigarras poderiam tocar na Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro ou no Porão do Rock.