Armando Freitas Filho

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Armando Freitas Filho, um dos mais importantes poetas brasileiros do século 20, nos deixou ontem. Ele veio duas vezes a Brasília, uma em 1991 e outra em 2002. Em 2016, pedi ao amigo que desse as suas impressões. Depois da conversa ao telefone, ele ficou tão entusiasmado com as suas epifanias brasilienses que prometeu escrever um poema sobre Brasília. E cumpriu a promessa três semanas depois. Esse é o poema que me enviou.

BRASÍLIA, PELO TELEFONE

p/ Severino Francisco

O céu é o mar de Brasília

Lucio Costa

aviso

A voz, ao vivo, no seu ouvido

teve mais calor, ou a lembrança

construída e imaginada: agora

por escrito, tudo irá parecer

que perdeu o suor, se enxugou.

aterrissagem

Essa cidade chegou de avião

desde a planta, sinal da cruz

sim, mas também de asas

procurando pouso no planalto:

maquete branca, imóvel

por natureza, e nela inserida

logo se anima: lago, os carros passam

as pessoas andam, há vento

e o que parecia simulação

em cima da terra vermelha

(não mais aparente, porém

sentida) é o chão pensado, passado

a limpo, debaixo do céu, que usa

azul a rigor, com nuvens de anúncio.

É a praça aberta até o horizonte

que secou seu cimento cinza

sem uma ruga no quarador solar.

a pé

Ao piscar parecia que tirava

fotos corrigidas, dos palácios

monumentos, muito conhecidos

só que agora sem a retícula

das sucessivas impressões

que chegavam à prova final.

Piscava e aparecia uma catedral

por onde se entrava através

de um piso subterrâneo, escuro

para merecer a explosão silenciosa

da luz em plena nave feita

para os anjos, fora do tempo, voarem.

Ou em outro piscar, breve, o que vinha

era a pequena capela do palácio

feito uma folha de papel almaço

enrolada sem pauta e escrita

que trazia como timbre, a marca da cruz

com um cheiro de cal virgem, de alma

que uma mão de tinta, de mármore

procurava salvar da inevitável mancha.

Sob o sol a pino, repentina, a paisagem

se molha, com o mar parado de azulejos

de Athos Bulcão – muralhamar azulando

lava os olhos de quem tanto viu durante

o dia que se encaminha para noite, que

cai

(pano lento, ou rápido?) com a alvorada

do palácio acentuado pela lua, que reveste

o acabamento, a nudez, de toda

construção.

partir

Dois dias foi minha partida: mesmo

se tivesse mil e uma noites não saberia

contar e decorar Brasília, o código

de suas ruas e superquadras, da sua vida

como Clarice em cinco, que conseguiu ver

até a beleza das “suas estátuas invisíveis”

com seu ar rarefeito, mas pude respirar o céu.

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