Severino Francisco
Será que nós perdemos o sentimento do trágico? A pergunta paira no ar depois que o Brasil atingiu o limite de mais de 120 mil mortes na pandemia, mortes que, em grande parte, poderiam ser evitadas se houvesse uma gestão mais responsável dos governantes.
O momento da morte é de tristeza, mas também de comoção, de compaixão, de solidariedade e de amor extremo. Encerra também uma lição de fatalidade e de humanidade, que deveria nos tornar seres humanos melhores.
Mas não é isso que acontece em nosso país. O que causa espanto é o novo normal, o normal fake, a tentativa negacionista de retomar a vida, sem nenhum cuidado, como se já tivéssemos ganhado a batalha contra o vírus. Diante de mais de 120 mil mortes, estou sentindo a solidão do algarismo. No entanto, me recuso a ser um número anônimo.
Por isso, resolvi buscar luz na tragédia do teatro grego Antígona, de Sófocles, que coloca no centro da cena um tema extremamente atual em tempos de pandemia: a luta de uma mulher pelo direito de enterrar o irmão morto em duelo com outro irmão. O irmão morto teria conspirado contra Tebas. Creonte, o rei de Tebas, ameaça Antígona de morte se ela insistir em celebrar o ritual de despedida do irmão.
Naqueles tempos, a mulher era subalterna na sociedade grega. Mas o teatro já projetava a imagem de uma figura feminina rebelde, corajosa e emancipadora. Antígona não aceita a interdição e trava uma batalha polêmica, alegando que as leis divinas não escritas valem mais do que as humanas dos governantes.
Ela não recua nem mesmo ante a sentença de morte proclamada por Creonte: “Procede como te aprouver: de qualquer modo hei de enterrá-lo e será belo para mim morrer cumprindo esse dever: repousarei ao lado dele, amada por quem tanto amei”.
Existe uma parte do diálogo em que cada argumento ganha um peso dramático quase que equivalente. Creonte: “Nem morto um inimigo passa a ser amigo”. Antígona: “Nasci para compartilhar amor, não ódio”.
Recusa-se a morrer envergonhada de si mesma e refuta a lei dos homens: “E não me pareceu que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las”.
A lei divina, não escrita, a que Antígona obedece, é a lei do amor. Mas esse preceito exige compromisso, atitude e ação. A tragédia grega colocava as grandes questões da cidadania em praça pública. Antígona tem muito a nos ensinar neste momento dramático da história brasileira.