Nós estamos vivendo sob o império dos números. Quase todas as decisões de ordem política ou econômica são tomadas com base em argumentos exclusivamente quantitativos. Não existem mais pessoas; só planilhas, estatísticas e projeções contábeis. O número venceu, pelo menos provisoriamente.
Não me refiro ao sensato equilíbrio de contas que deve reger a vida das nações, das empresas ou das famílias, sem o qual não chegam a lugar nenhum. Mas a economia não pode ser um fim em si mesma; ela deve ser um instrumento para a promoção do desenvolvimento, da justiça social, da educação, das utopias ou da felicidade.
O uso exclusivo dos números para nortear a nossa vida empobrece, obscurece e aliena. Nos deixa cegos para outros aspectos essenciais da realidade. Por exemplo, os economistas costumam louvar, em prosa e verso, automaticamente e acriticamente, as estatísticas da produção agrícola sem atentar, em nenhum momento, para os impactos no meio ambiente.
No entanto, os cientistas têm alertado que as monoculturas afetam o ciclo das águas e contribuem para o acirramento da crise hídrica. De outra parte, o mercado parece a expressão de uma entidade divina, soberana, racional e incontestável. Todavia, é regido pelos humores mais instáveis, mais irracionais e mais predatórios. Oito bilionários detém o bolo maior da riqueza do mundo enquanto nações inteiras agonizam na linha da pobreza ou da miséria.
Os mandatários que decidem as grandes questões nacionais desconsideram tudo que não seja um número. Os seres humanos foram inteiramente extintos dos discursos, das argumentações e dos projetos. Estou sentindo a solidão terrível do algarismo. Isso me deu uma absurda nostalgia do humano, do erro, do transcendente, do utópico e do inefável.
Em 1967, Clarice Lispector escreveu uma crônica proclamando, a plenos pulmões, que era um número. No entanto, logo em seguida, ela própria se insurgiu contra a sentença proferida e resolveu fazer nova crônica retificando sua declaração.
Depois de meditar um pouco sobre o tema, chegou à conclusão de que não, definitivamente, não era um número. Na pressa para entregar o texto, ela mesma sentiu-se ultrajada pelas próprias palavras. Farejou no ar que havia desagradado e incomodado muita gente.
A nova crônica foi uma insurreição contra o anonimato, a frieza e a desumanização do número. Encontrei em suas palavras um oráculo para a minha aflição atual com o pesadelo de um mundo regido soberanamente pelos algarismos: “Não. Você não é um número. Nem eu”, sentencia Clarice, com a velocidade de sua intuição fulminante.
E continua: “Porque há o inefável. O amor não é um número. A amizade não é. Nem a simpatia. A elegância é algo que flutua. E se Deus tem número – eu não sei. A esperança também não tem número. Perder uma coisa é inefável: nunca sei dizer onde as coloquei. Inclusive perco até a lista de coisas a não perder. Morte é inefável. Mas a vida também o é. Inclusive ser é de um provisório impalpável”.
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