Alegria fulminante

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Eu sabia que o Vladimir Carvalho havia sofrido um avc em 5 de outubro e estava na UTI. Mesmo ciente da situação delicada e de que ele tinha 89 anos, ninguém está preparado para receber a notícia: Vladimir Carvalho morreu! Então, que me desculpe o leitor, mas ainda estou sob o transe da partida desse amigo e amigo da cultura em Brasília.

É difícil encontrar algum artista que não tenha alguma dívida de gratidão com Vladimir. Ele era de uma solidariedade franciscana, pungente e absoluta em todos os instantes da vida. Eu tive um problema burocrático com o meu diploma de mestrado em literatura na UnB e contei ao Vladimir. Pois ele ficou quatro horas pregado em uma cadeira para falar com o reitor e me ajudou a resolver a pendência.

Vladimir era um cinememória em carne e osso. Ele guardava detalhes inimagináveis de personagens, acontecimentos e situações. A grande obsessão dessa fase final da vida era o destino do Cinememória, que ele criou, com dinheiro do próprio bolso, em um país que cultiva a desmemória. Graças à solidariedade de Márcia Zarur e Ana Maria Lopes, do Coletivo Maria Cobogó, e do Iphan,  na pessoa do presidente da instituição, Leandro Grass, a situação começou a se desembaraçar.

A solução estava encaminhada. Segundo a versão de alguns amigos, Vladimir teve um infarto de tanto júbilo. Chegou a dizer, claramente, que aquele era um dos dias mais felizes de sua vida. O problema no coração foi sanado, mas o infarto atingiu os rins e derrubou o nosso bravo Quixote paraibano.

Nada indicava que ele fosse nos deixar tão rapidamente. Assisti ao belíssimo show de Fausto Nilo no Clube do Choro em uma mesa com Vladimir, Gioconda Caputo e Sérgio Moriconi. Vladimir exaltava a bravura de Clodo e Climério na luta contra o câncer. Dizia que não teria essa coragem ou paciência. É uma trágica ironia. Talvez tenha sido fulminado pela felicidade. Os deuses nunca cessam de jogar os seus dados.

A vida de Vladimir foi um sopro, mas um sopro que durou 89 anos, com muita luta, 23 filmes (diversos marcantes), formação de várias gerações de cineastas, contribuição decisiva para a criação de uma estrutura de produção do cinema em Brasília e uma legião de amigos. E o importante também é que ele foi devidamente reverenciado em vida. Ao ser homenageado no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Vladimir brincou: “E quer saber Brasília, eu mereço”.

Que o legado de Vladimir seja honrado. E aproveito para sugerir que o Cine Brasília passe a se chamar Cine Brasília Vladimir Carvalho, de maneira semelhante a que o Teatro Galpão se chama Teatro Galpão Hugo Rodas. Que seja encaminhado o projeto do Cinememória como primeiro passo para a criação da Cinemateca de Brasília.

Fui pegar uns catálogos no bloco em que Vladimir morava com a esposa, Maria do Socorro. Dirigi-me ao funcionário da portaria e fiquei curioso para saber a opinião dele sobre o nosso personagem. Quem sabe funcionário poderia falar da relação cotidiana com Vladimir na condição de morador do prédio.

Ao chegar, me identifiquei e observei o funcionário para ver se podia entabular uma conversa. Mas ele era um pouco introspectivo, vi que emanava uma luz triste, mas serena dos olhos. Resolvi ficar na minha. Entregou as publicações, eu apanhei e já dava meia volta rumo à redação, agoniado com a contagem regressiva para o fechamento de quatro páginas sobre Vladimir quando o funcionário virou-se para mim e disse: “Nosso amigo foi se embora, ele seguirá em paz, pois era gente muito boa”.

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