Severino Francisco
Animado pelo espírito de audácia, Assis Chateaubriand, o cangaceiro modernista e modernizador da comunicação no Brasil, realizou tantas façanhas na condição de homem de ação e de empresário desbravador, que essas duas facetas soterraram o jornalista e, principalmente, o jornalista-escritor. Mas ele teve a sorte de ser saudado em 6 de maio de 1969, com um discurso revelador, pelo poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto, ao tomar posse na Academia Brasileira de Letras da cadeira anteriormente ocupada pelo jornalista paraibano. É uma das mais brilhantes análises sobre a relação entre jornalismo e literatura escritas no Brasil.
João esquece as anedotas, se concentra precisamente no jornalista e o alça à condição de um dos grandes escritores brasileiros. O poeta esteve com o Chatô uma única vez em uma conversa que se desdobrou em monólogo polêmico por duas horas pela fluência verbal e verve do paraibano. “Minha índole é de controvérsia”, dizia Chatô
Cabral flagrou ali o aspecto mais original do grande prosador paraibano de Umbuzeiro: parecia que já tinha ouvido aquela voz tão singular dos artigos que lia desde os tempos de adolescente no Diário de Pernambuco: “E não disse ‘grande prosador paraibano de Umbuzeiro’ como forma retórica: é que, para mim, o jornalista Assis Chateaubriand foi na verdade um prosador dos melhores, e um prosador em que estão presentes os traços mais distintivos dos escritores do Nordeste”.
João observa, com agudeza, que por mais espontânea que pareça, a língua do jornal não é a língua falada. O exercício do jornalismo, a obrigação de escrever, de qualquer maneira, sobre o que quer que aconteça, e sempre contra o relógio, não leva o jornalista a empregar sua maneira própria de falar, sua voz física: sim, o leva a empregar uma língua outra, a língua do jornal, o jornalês: “Pois se as condições do trabalho de redação prejudicaram esse escritor sob certos pontos de vista, não puderam prejudicá-lo naquilo que, para um escritor, é essencial: encontrar sua voz própria, esse sotaque pessoal, que Chateaubriand, com o instinto do verdadeiro prosador, transformou em estilo.”
O estilo de Chatô não tem nada de planejado: é simplesmente o estilo que ele achou quando sua situação de jornalista-dono-de-jornais lhe permitiu escrever, não em estilo de jornal, mas da maneira como bem lhe parecesse, observa João. “Ora, ao poder escrever como bem lhe parecesse, Chateaubriand se viu escrevendo como falava. Quando liberado dos espartilhos da convenção jornalística, a que o obrigava o fato de escrever para jornais dos outros, Chateaubriand encontra, escrevendo, sua maneira de falar, sua voz física: ora, por debaixo dela estava o Nordeste, que era o timbre e a dicção dessa voz”.
Por isso, João usou a expressão língua falada e não língua coloquial. “Esses artigos estão escritos numa língua falada, mas na língua falada pessoal do homem Assis Chateaubriand, e não numa língua de quem estava procurando reproduzir a maneira de falar de uma situação determinada, ou de uma pessoa outra. É a língua de uma pessoa que fala como quem discute, como era a própria fala de seu autor, e que discute sempre apaixonadamente”. O inconformismo dos escritores surgidos a partir dos movimentos de renovação das artes dos anos 1920 impactou Chateaubriand e o transformou em cangaceiro modernista, que escavou a própria voz nas páginas efêmeras dos jornais.
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