A vingança delicada

Publicado em Crônicas

Severino Francisco

Beth Ernest Dias vem de uma família que é quase uma orquestra sinfônica: a mãe é a magnífica flautista Odeth Ernest Dias. E os irmãos foram pela mesma trilha: Andréia (flauta), Carlos (oboé) e Jaime (violão).

Durante quatro décadas, Beth parecia estar em todos os lugares. Tocava na Orquestra Sinfônica Claudio Santoro, na Escola de Música de Brasília, nos bares, em vernissages, recitais, gravações e shows de música popular. Cultivava a flauta com devoção, o instrumento era quase uma extensão do seu corpo.

Participou de uma parte muito importante da história recente da música popular brasileira. Integrou o conjunto Fina Flor do Samba, um dos marcos para a retomada do chorinho no país, na virada da década de 1970, no Rio de Janeiro. Tocou com Beth Carvalho, Jards Macalé e Moreira da Silva, entre outros craques.

Como se não bastasse contribuir, decisivamente, para a formação de várias gerações de flautistas, esteve na linha de frente das principais lutas pela dignidade dos músicos e da música de Brasília. Ela é delicadamente brava, mas sem perder a ternura jamais. Basta uma blague espirituosa para que abra um sorriso solar e se derrame em uma gargalhada de alegria.

Esse retrato relâmpago da Beth tem como objetivo evocar uma historia dos tempos de adolescência, quando tinha 14 anos e estudava em um colégio tradicional do Rio de Janeiro. A atração principal do curso era o seminário de literatura, sob a orientação de uma professora muito rigorosa. E, naquela época, não havia nenhum botão do Google para enganar os incautos. Era preciso pesquisar e estudar duramente.

A literatura moderna estava no ápice, a meninada disputava e levava para a sala de aula entrevistas exclusivas com Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector e outros artistas da palavra. Nesta época, Beth se encantou com um volume de contos de Dalton Trevisan, intitulado O vampiro de Curitiba. Ficou fascinada e resolveu entrevistar o arredio autor.

Enfim, depois de árdua pesquisa, descobriu o endereço de Dalton, preparou um questionário com perguntas meticulosas e enviou ao Vampiro de Curitiba. E nenhum sinal de Trevisan. No entanto, às vésperas do seminário, recebeu dos Correios um pacote massudo e ficou trêmula.

Sim, o remetente era ele. Contudo, quando abriu a correspondência, percebeu que Dalton Trevisan não respondera a seu escrupuloso inquérito. Na verdade, compilou inúmeras matérias e sublinhou com um marca-texto os trechos em que se destacava o fato de “Dalton Trevisan odiar conceder entrevistas”.

Em face da gravidade dos fatos, Beth decidiu escancarar a situação no seminário. Trevisan foi execrado pelos colegas da escola, com argumentos tão convincentes e provas tão contundentes que, do outro lado da vida, o próprio Dante Alighieri, autor de A divina comédia, resolveu criar uma sessão de tormentos, no espaço inferno, especialmente para escritores que se recusam a conceder entrevista a colegiais inocentes.

Ó, vampiro de Curitiba, saiba que aquela garotinha a quem você sonegou, sadicamente, míseras palavras de um depoimento, se tornou uma flautista sublime. Se ela toca, o mundo fica mais leve. E, nas noites de lua cheia, quando você busca apaziguar a alma com um chorinho brejeiro, saiba, ó ser de escuridão e rutilância, que aquela flauta maviosa que você ouve e cai em seu espírito como um bálsamo é daquela garotinha. Aposto que você não imaginava uma vingança tão mortalmente delicada.

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