Severino Francisco
Um leitor consignou, sutilmente e gentilmente, que eu ainda não havia falado do esplendor dos cambuís, que tingem de amarelo e verde os espaços abertos, as superquadras e as vias da cidade. Ele abriu o jornal de domingo passado com a certeza inapelável de que eu daria notícia da floração, mas o seu vaticínio não se confirmou. Gostaria de registrar que o leitor tem toda razão, a beleza da floração dos cambuís salta aos olhos, mesmo aos de um repórter distraído.
Gilberto Freyre forjou o conceito de “rurbano”, concepção de cidade que alia, harmonicamente, as qualidades campestres e as citadinas. E isso em uma época de furor modernoso, que ameaçava atropelar qualquer vestígio de preocupação ecológica. Estive na Fundação Gilberto Freyre duas vezes, para negociar direitos autorais de textos inéditos, com os filhos do sociológo-escritor, Fernando e Sônia Freyre.
A sede está instalada em um sobrado português, no bairro Apipucos, cercado, bucolicamente, de mangueiras, jabuticabeiras, limoeiros, abacateiros, pitangueiras, goiabeiras e coqueiros. Embora fosse entusiasta da transferência da capital do país para o Centro-Oeste, Gilberto fazia restrições a Lucio Costa e Oscar Niemeyer, pois, segundo o pernambucano, eram brilhantes artistas de uma arquitetura escultórica, mas desatentos a aspectos sociais e ecológicos.
Eu gostaria que Gilberto visitasse a cidade em dezembro quando os cambuís atinge o esplendor nas superquadras, nas faixas centrais do Eixo Monumental Sul e Norte, no início da L2 Sul, na Vila Planalto, nas Asas Norte e Sul, entre outros pontos. Na época em que Gilberto esteve em Brasília a cidade-parque era apenas um conceito.
Mas, agora, ela floresceu em inúmeras espécies que promoveram um verdadeiro calendário floral, que subverte o calendário apenas numérico das folhinhas e ameniza a aridez de algumas estações. E, com certeza, a presença densa do verde será importantíssima em um contexto fenômenos extremos das mudanças climáticas, nos quais já estamos mergulhados.
Existe uma Brasília totalmente desconhecida dos não brasilienses, que só veem a Esplanada dos Ministérios pela tevê e acham que a cidade é tão árida quanto uma paisagem lunar. Essa outra Brasília é a da cidade-parque, do calendário floral, dos ipês, dos guarapuvus, das sibipurunas, dos cambuís, dos joões-de-barro, dos bentevis, dos canarinhos, das araras, dos tucanos ou das curicacas.
As mudanças climáticas transtornaram o calendário floral. Em alguns lugares, os ipês não soltaram a floração. No entanto, os cambuís compareceram com todo o fulgor. É uma espécie exótica, mas que se adaptou plenamente ao ambiente urbano. Além da beleza, atrai as abelhas para a polinização e tem raízes fortes, resistentes aos ventos que têm se tornado, cada vez mais ameaçadores, derrubando árvores a cada chuva.
Da janela do prédio, de dentro do carro em trânsito ou durante uma caminhada, os cambuís proporcionam o êxtase de um cinema transcendental no cotidiano da cidade. Certo dia de um final de ano, eu circulava de carro com muita filha pela Asa Sul, enquanto os cambuís e os flamboyants se derramavam de beleza pelos pontos por onde passávamos.
Estávamos falando do êxtase de morar em uma cidade-parque quando ela comentou: “Eu gosto quando a cidade fica assim tão florida. Parece que tudo vai dar certo em minha vida”. É isso mesmo: a beleza é uma promessa de felicidade, me sopra ao ouvido Sthendal.
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